Até setembro último, caso o arguido não constituísse defensor, este era nomeado ou indicado, direta ou indiretamente, pela Ordem dos Advogados. Todavia, com vista a contornar as consequências da luta dos advogados pela atualização da tabela de honorários devidos pelo exercício de funções para que são oficiosamente nomeados ou designados, a qual se mantém inalterada há cerca de 20 anos, o atual Governo atribuiu competência aos Órgãos de Polícia Criminal, ao Ministério Público e aos Tribunais para, não sendo possível a nomeação de defensor com base na lista de escala de prevenção organizada pela Ordem dos Advogados, nomearem qualquer advogado ou advogado estagiário que, após contacto, manifeste a sua disponibilidade.

Esta medida presta-se a plúrimas críticas, de várias naturezas, designadamente por se afigurar não só injusta como potenciadora de favorecimentos ilícitos e, até, de corrupção. Todavia, pouco ou nada se tem sublinhado aquela que, a meu ver, consubstancia a sua mais grave perversão – a atribuição de competência a órgãos estaduais do sistema de justiça penal para nomearem defensores a arguidos.

Recorde-se que os Órgãos de Polícia Criminal podem praticar, por competência própria ou delegada, atos profundamente danosos para direitos fundamentais de arguidos. É, por isso, inaceitável que se lhes ofereça o poder de nomearem, para defenderem os arguidos nesses atos, os advogados que quiserem. Essa solução permite-lhes optarem por advogados amigos, por advogados menos experientes nas matérias em causa, enfim, por advogados que preencham os critérios que eles, os polícias, tiverem por mais convenientes. E como se este quadro não fosse de enorme gravidade em quaisquer contextos, imagine-se os perigos que encerra numa época em que a alegada “meritocracia” e a exibição de pretensos “troféus de caça” também chegaram às Polícias, sendo critérios de promoção interna e externa dos seus agentes.

Porém, boa parte destes riscos não deixam de estar igualmente presentes na escolha de defensores de arguidos pelo Ministério Público e pelos Tribunais. Pense-se, por exemplo, na nomeação de um advogado para defender um arguido numa audiência de discussão e julgamento por escolha do juiz que vai presidir a esse ato. Nestes tempos em que os Magistrados são avaliados, não fundamentalmente pela qualidade do seu trabalho, mas sobretudo pela celeridade que imprimem aos processos, o juiz pode bem ser tentado a optar por um advogado que saiba ser menos apto para o caso ou que habitualmente não suscite questões complexas.

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Por tudo isto e muito mais, a medida em apreço, no mínimo, encerra uma enorme potencialidade lesiva para direitos fundamentais dos arguidos. Daí que possa suscitar-se a questão da sua inconstitucionalidade, o que poderá vir a pôr em causa inúmeros atos processuais, inclusive sentenças e acórdãos, entretanto praticados.

Seja como for, tal medida confere aos sobreditos órgãos estaduais do sistema de justiça penal o poder de decidirem em causa própria no que concerne à nomeação de defensores para arguidos relativamente aos quais vão praticar atos lesivos ou potencialmente lesivos de direitos fundamentais. E isso não só encerra os riscos mencionados, como é suscetível de gerar suspeições relativamente às referidas nomeações, tanto por parte de intervenientes processuais, designadamente de arguidos, como da comunidade.

Ora, isto é tudo o que os tempos de hoje não precisam. Atualmente, não basta que a administração da justiça seja séria. Igualmente tem de parecer que o é. Também deste ponto de vista, a medida em causa é profundamente criticável.