Para o José Dias

Conheço apenas quatro autores para os quais a alegria é a mais elevada das virtudes humanas: Epicuro, Chrétien de Troyes, Espinosa, Stendhal. No final da sua aventura, os heróis de Chrétien de Troyes recebem a Alegria como recompensa, ainda que não seja claro que coisa possa ela ser: uma trompa mágica que obriga à dança, ou uma trompa que inebria, um jogo, um prazer? Jocus é o antigo nome do júbilo; aquele ficar sem palavras de alegria no limite da linguagem, no desfecho da ventura, abrindo-se ao silêncio ou à música da trompa que obriga a alma ao silêncio.

Espinosa era pequeno, frágil, de origem portuguesa e tinha sido judeu. Colerus diz que ele passava a vida enfiado numa bata manchada, algo que um vereador da cidade de Amesterdão lhe esfregara na cara. Calçava uns sapatos cinzentos com fivelas prateadas. As suas meias eram de sarja. Usava uma túnica negra turca, uma gola e um manguito preto.

Na sua biblioteca, possuía cento e sessenta livros. Talhava e esmerilava vidros para lentes astronómicas e tubos de microscópio. O seu gasto diário orçava em quatro quartos e meio. O seu sustento consistia numa sopa de leite temperada com manteiga e uma caneca de cerveja que comprava pelo valor de dez meias pintas de vinho por mês. Trabalhava a uma mesa desde o amanhecer. Sobre cada peça que separava do disco de vidro, manuseando o seu diamante, acudia, brincando, o fragmento de um raio de luz. Van Rooijen acrescenta que, quando o sol se punha, recolhia a poalha que se separara da peça que tinha talhado; recolhia-a na palma da mão e ia deitá-la ao lixo. Acendia uma vela e meditava. Fumava cachimbo uma vez por dia e, se um amigo aparecesse a essa hora, dava início com gosto a uma partida de xadrez. Apreciava lutas de aranhas no interior de uma caixa.

A nossa vida consome algo de eterno. O gozo – o jocus – é, para todos, um só e o mesmo estremecimento para sempre. Tão ligeiras e desnudas são as nossas mãos… Acreditava que, nascendo, nos vinculamos ao presente e à beatitude da acção. Dizia: «Estamos compreendidos pela felicidade, no eterno presente. Usem-se as palavras que bem se entenderem. Tudo é uma mesma matéria efervescente e responde ao mesmo recesso. Deus não implica nem desígnio nem propósito. O corpo e a alma são indistintos. Deus, a vida, o universo, a natureza, o pensamento, o desejo, não podem separar-se. Um raio daquela claridade que se desprende da massa do sol, um órgão que pende e que o desejo incha, um abeto, Saturno, os lábios ligeiramente abertos de uma promessa italiana sussurrada ao ouvido, um alaúde, uma jarra de cerveja que fermenta, Descartes, o Spui, a memória de Clara-Marie Van Enden são a mesma coisa. Somos fragmentos do reino do vivente. A usura do mundo, a perversão da linguagem, a desordem da tirania faz com que seja maior a dificuldade que o pensamento experimenta em fazer reinar este reino: o pensamento é tão difícil como raro.»

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A palavra que frequentemente traduzimos por «difícil» é praeclarus, que significa «muito claro, resplandecente». Rarus significa, em latim, «disperso pela terra». O pensamento é algo tão claro que se encontra espargido pela terra. Não demorou muito até que a palavra rarus passasse a significar «distante no espaço, raro no decurso do tempo». O pensamento não é tão difícil como raro: é tão luminoso como distante no decurso dos séculos. Não é que o pensamento seja precioso por conta da sua rareza; ele simplesmente diz que é muito raro.

Bento Espinosa chamava aos holandeses ultimi barbarorum, os últimos dos bárbaros. Dizia: «Estar com vida e estar vivo são duas coisas que não se confundem». Um dia, perto do Spui, disse a Colerus: «Estamos compreendidos pela felicidade. Esta felicidade é limitada, mas não devemos nela introduzir aquilo que a limita». Escreveu: «Apenas uma superstição selvagem proíbe a entrega ao prazer. Na verdade, até que ponto é mais legítimo aplacar a fome e a sede do que afastar a melancolia? Eis a minha regra: nenhuma divindade se compraz no meu desamparo ou na minha tristeza. Pelo contrário, quanto maior a alegria pela qual somos afectados, maior a perfeição a que acedemos. É próprio, portanto, de um homem sábio usar para a reparação do corpo alimento agradável, bebida inebriante, olores para o olfacto, o encanto das plantas e das flores para o olhar, os adornos que acrescentam luz aos tecidos que nos protegem, música para os ouvidos, jogos e carícias para exercitar o corpo e os diferentes membros, espectáculos e outras coisas do mesmo tipo de que todos se podem servir sem causar dano a ninguém.»

Gostava de ler, fosse porque esta atividade fazia que palpitasse e estremecesse o espírito, fosse porque lhe colocava de novo o corpo numa posição mais encolhida e antiga que de algum modo o reparava.

Um dia estabeleceu-se novamente em Haia. Gostava de um pequeno jardim relvado rodeado por muros atrás da casa. Em 1667, pintavam ainda Rembrandt e Vermeer. Ele próprio aprendera a pintar mas desistira. Redigiu um livro póstumo, Ethica: é o mais belo e mais feliz quadro invisível que o mundo a si mesmo se ofereceu. Durante anos, costumava relê-lo pela tarde. Guardava-o numa pequena escrivaninha. Sofria de insónias crónicas que transformara em felicidade lendo. Gostava tanto da alegria… Apagava o pavio às três da manhã, reclamando para si algum repouso enquanto esperava o amanhecer.

Como áugures romanos traçando no ar, com a ponta do seu lituus, o espaço imaginário do templo, os amantes encenam nos seus corpos ofegantes aquele raro evento que ocorre em dois dos três London trios de Haydn: frases que, no limite da linguagem humana, quase têm sentido. Minúsculas reuniões de sussurros. Consonâncias, reconciliações acústicas.

A linguagem do amor organiza-se em torno de corpos que, sem trégua, inspiram e expiram. Que sem tréguas “agonizam”. Quando emitem sons, os amantes dividem a respiração em duas metades nunca completamente distintas. Abdicam do controlo da sua vontade a essa pulmonação obsessiva e subjugadora. E – a palavra psychè em grego significa simplesmente respiração – com os seus gritos, constroem o tom, o timbre, a voz, a cadência, o silêncio e o canto da alegria com que a chuva cai e nos embacia os vidros.