A Patrícia está a decorar a sua casa e colou na parede uns postais que reproduzem cartazes de propaganda da União Soviética. Ela é uma mulher de centro-esquerda, e é sobretudo uma pessoa culta e informada: sabe que a URSS foi um regime totalitário, que oprimiu povos e matou milhões, e que assombrou a Europa durante o século XX. Ou seja, ela sabe que colar aqueles cartazes não é o equivalente a colocar um quadro na parede – eles têm um significado político e moral. Um significado com o qual ela não se identifica. Só que, diz-me, não resistiu ao apelo estético. Mas, pergunto-lhe, e se fossem cartazes da Alemanha nazi, da Itália fascista ou do Estado Novo? Nesse caso, tal coisa nunca lhe passaria pela cabeça. Ou seja, afinal, o critério não é apenas estético.

Este exemplo transporta-nos para algo que tantas vezes constatamos: associa-se um certo glamour aos totalitarismos e autoritarismos de esquerda, que tanto servem de pano de fundo de espectáculos (os Mão Morta usam no palco imagens de Estaline e Mao), como servem de modelo de negócio (comercializando cartazes da URSS ou t-shirts do Che Guevara, entre centenas de produtos nostálgicos). Algo que não tem paralelo com os regimes autoritários de direita, em que qualquer utilização semelhante é imediatamente repudiada.

O ponto aqui não é realçar a hipocrisia de se tolerar selectivamente um totalitarismo à esquerda e de se rejeitar outro à direita, como se houvesse totalitarismos bons e maus, ou autoritarismos bons e maus. A hipocrisia é óbvia. E, por mais absurda que a distinção seja, ela faz-se. A questão é porquê.

Uma das razões é a eficácia com que a esquerda comunista (que está ideologicamente alinhada com esses regimes) reescreve a história. E, neste caso, ‘reescrever’ significa ‘lavar’, tirar-lhe as manchas. Não é por acaso que o PCP considera que a queda do Muro de Berlim representou a destruição das “realizações económicas, sociais e culturais de mais de 40 anos de poder dos trabalhadores” na ex-RDA. Não é coincidência que Miguel Tiago, deputado do PCP, branqueie o massacre de Tiananmen pelo regime chinês, afirmando não existirem provas desse massacre (pelo que o mesmo não passa de um “campanha” dos EUA). E não é surpresa que Bernardino Soares veja no regime da Coreia do Norte uma potencial democracia, que o PCP rejeite condenar os seus crimes contra a humanidade, e que o jornal Avante! sirva de veículo de difusão da propaganda do regime.

Habituámo-nos a olhar para estas ‘lavagens’ históricas com desdém e, mais ainda, a denunciá-las. E convencemo-nos que, fora do PCP, não haverá quem acompanhe estas e outras tomadas de posição tão irrealistas e anacrónicas. Mas a verdade é que o que nós achamos delas não importa muito. O acto de reescrever a história não é direccionado para quem conheceu a Guerra-fria, o muro de Berlim ou o massacre de Tiananmen. Esse propósito tem os olhos no futuro – nas gerações futuras, sem essa memória e à mercê de várias versões da história. Porque até para o PCP uma coisa é certa: o futuro da ideologia comunista depende de que não se conheça o seu verdadeiro passado.

Falar do PCP aqui é, no fundo, falar de vários partidos comunistas pelo mundo, alinhados para transmitir uma mesma mensagem. Serão mesmo tentativas ridículas e vãs de reescrever a história? Não: é tudo uma questão de horizontes. No final, não serão os comunistas a mudar os anais da história, mas o facto é que a Patrícia gosta mesmo dos seus postais. E vai colá-los na parede.

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