1 O sistema educativo português obteve vitórias que nos devem orgulhar. Uma dessas vitórias é a redução da taxa do abandono escolar precoce — ou seja, a percentagem de jovens entre os 18-24 anos que não concluiu o ensino secundário e não está a estudar. Em 1992, o abandono escolar atingia os 50%. Dez anos depois, em 2002, estava praticamente na mesma (45%). Dito de outra forma: cerca de metade dos jovens saía da escola sem concluir o 12º ano — um desperdício de potencial humano. Foi no início dos anos 2000 que a redução do abandono escolar se destacou entre os objectivos das políticas públicas de educação e, desde então, a evolução tem sido notável.

Tem sido notável por duas razões. Primeiro, porque a redução foi constante e rápida. Em 2012, a taxa de abandono escolar (20,5%) já era menos de metade do que era em 2002. Agora, em 2023, está nos 8%. Em vinte anos, o abandono escolar passou de dominante a quase-residual. É extraordinário: há gerações de portugueses que, graças a esta vitória, terão horizontes mais amplos para a sua vida adulta — social e profissionalmente. A segunda razão desta evolução ter sido notável é política: o consenso partidário foi inabalável. Ao longo desses vinte anos, a prioridade de redução do abandono escolar atravessou governos diferentes, ministros diferentes, partidos diferentes. Foi uma causa de todos e, por isso, uma vitória de todos. Não abundam exemplos de rumos estratégicos tão consensuais e duradouros nas políticas públicas de educação.

2 Em 2023, o abandono escolar foi de 8% e, portanto, aumentou 1,5 pontos percentuais face a 2022 (6,5%). Um valor inesperado para muitos. Afinal, habituámo-nos a ver o abandono escolar diminuir anualmente e, desde 1998 (há 25 anos!), que não se via um aumento desta magnitude. O mínimo seria que este aumento servisse para lançar perguntas. Desde logo, sobre as suas causas — o que aconteceu para justificar este aumento? Depois, sobre as medidas de resposta — o que se pretende fazer para continuar a puxar o abandono escolar para baixo? O Ministério da Educação não quis fazer estas perguntas.

Reagindo em comunicado à publicação dos indicadores do INE, o Ministério da Educação desvalorizou a subida do abandono escolar em 2023. Por um lado, porque considerou que 2021 e 2022 foram “anos atípicos” (pandemia), razão pela qual a comparação (para avaliar subidas ou descidas) deveria ser feita com 2020 (9,1%) — ou seja, colocou o foco na evolução entre 2020 e 2023, para salientar uma descida de 1,1 pontos percentuais. Por outro lado, colocou em causa a fiabilidade dos dados do INE, invocando alterações metodológicas que inviabilizariam a comparação com o ano de 2023. Em síntese, o Governo rejeitou o diagnóstico: fosse por questões contextuais (pandemia) ou por razões metodológicas (INE), a subida do abandono escolar não era para ser levada a sério porque, na versão oficial do Ministério da Educação, continuava a haver descida do abandono escolar (entre 2020 e 2023). O INE já refutou esta argumentação.

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3 A posição do Governo contém inúmeros problemas. O mais gritante é a completa desonestidade intelectual usada para desqualificar os tais “anos atípicos” (2021 e 2022), que tiveram uma taxa de abandono escolar à volta dos 6,5% e, portanto, inferior a 2023. Recorde-se que as taxas de abandono escolar nesses tais “anos atípicos” foram celebradas com pompa pelo Governo, que assinalou os “mínimos históricos” do abandono escolar. Não foi apenas o Ministério da Educação. Foi o próprio Primeiro-Ministro que, em 2022, descreveu a redução do abandono escolar como a “maior mudança estrutural” na Educação durante os seus mandatos. Ou seja, as taxas de 2021 e 2022 foram usadas e abusadas para enaltecer o Governo em comparações com anos anteriores. Mas, perante a subida em 2023, deixaram de ser úteis para as narrativas de sucesso e foram desqualificadas como “anos atípicos” e excluídas das comparações. A validade dos dados não pode depender da conveniência política. Não há forma benevolente de olhar para este spin político: o Governo e Ministério da Educação têm um problema com a verdade.

Não é de hoje. A preferência por “factos alternativos” tem definido a postura do Governo na Educação. Por exemplo, vimos semelhante abordagem em relação à aprendizagem, quando o Governo celebrou progressos dos alunos durante e após pandemia, que não só não tinham qualquer validade metodológica como vieram a ser categoricamente desmentidos pelas avaliações internacionais (PISA 2022) e nacionais (estudo diagnóstico 2021-2023) subsequentes. Da mesma forma que vimos o Governo manipular a comunicação pública dos resultados do PIRLS 2021, inventando um segundo resultado nacional mais vantajoso do que o verdadeiro. Ou ainda quando vimos o Governo desconsiderar um parecer do Tribunal de Contas, que arrasou a implementação do Programa de Recuperação da Aprendizagem. A lista completa é chocantemente longa. E o inquietante não está apenas na intoxicação do debate político, que ficou envenenado por meias-verdades e mentiras. O ponto central é que, ao recusar os diagnósticos, o Ministério da Educação tem-se colocado à margem das soluções: se não reconhece os problemas, não sente a necessidade de os resolver.

4 Onde está a verdade sobre o abandono escolar em 2023, afinal? Há dois pontos a fixar. O primeiro é que, efectivamente, a pandemia reduziu artificialmente o abandono escolar em 2021 e 2022. Com as escolas fechadas, com o ensino a distância e menor pressão sobre desempenho escolar, com menores oportunidades de emprego, os “incentivos” para abandonar a escola foram baixos. Situação que se inverteu com o regresso à normalidade de 2023 — os “incentivos” a abandonar a escola multiplicaram-se, nomeadamente as oportunidades de trabalho. Isto significa que o contexto de pandemia explica o baixo abandono escolar de 2021 e 2022, assim como o pós-pandemia explica a subida em 2023. Aconteceu, portanto, o expectável em função do que nos ensina a investigação nesta área. Ora, o Governo agarrou-se a esta explicação sobre 2023, mas apedrejou quem, em 2021 e 2022, antecipou essa mesma explicação.

O segundo ponto a fixar é que o abandono escolar em 2023 (8%), apesar de ter subido, mantém Portugal dentro dos objectivos europeus. Mas ficam perguntas no ar. Respostas mais definitivas virão daqui a uns meses, quando conhecermos os dados europeus para o abandono escolar e compararmos a subida portuguesa com a situação noutros países. Terá havido uma tendência generalizada de ajustes (em alta) no pós-pandemia? Como se posiciona Portugal — como caso isolado ou parte da tendência? E como se antevê a evolução da taxa do abandono escolar em Portugal — voltará a descer ou tenderá a subir (por exemplo, devido ao peso da imigração)? A comparação internacional ajudará a compreender o que aconteceu e a ponderar o peso de outros factores nacionais (para além da pandemia).

5 É triste que o abandono escolar, habitual palco de consensos e vitórias, seja atirado para uma trincheira de combate político. O Governo fê-lo quando celebrou dados (2021 e 2022) que sabia estarem artificialmente baixos. E o Governo voltou a fazê-lo quando condicionou as análises de 2023, para que correspondessem à sua narrativa. Nos últimos 20 anos, Portugal melhorou extraordinariamente no abandono escolar porque, em vez de narrativas políticas, respeitou os diagnósticos. É importante não retroceder nesse caminho.

* candidato a deputado pela AD