Observa-se um número crescente de revelações de ódio e de intolerância no espaço público. Só nos últimos dias, viram-se slogans anti-semitas numa grande manifestação no Porto, viu-se um outdoor político a ser queimado no centro de Lisboa e vê-se ainda o imbróglio institucional causado pela convocação de uma manifestação “anti-islâmica” no Martim Moniz, entretanto proibida pelas autoridades por motivos de segurança pública. O ambiente tóxico das redes sociais instalou-se nas ruas. Multiplicam-se expressões que exibem visões anti-democráticas e anti-sistémicas, alimentadas por xenofobia ou ressentimento social. E, pior ainda, com aparente adesão popular. Os radicalismos estão a sair das franjas da clandestinidade e a reclamar o seu espaço de intervenção no centro do debate público. Seria um erro subestimar os riscos que aqui se escondem.

O primeiro risco é o de contágio. Por mais que a mensagem subjacente destes movimentos seja anti-democrática e anti-sistémica, os partidos democráticos e com representação parlamentar hesitam em distanciar-se de forma firme, possivelmente para não hostilizar eleitorado que pretendem cativar. Na manifestação pela Habitação, no Porto, isso foi evidente entre partidos da esquerda parlamentar que, tendo participado nas acções de rua, optaram por não repudiar as mensagens de ódio anti-semita que então foram exibidas — é mais confortável desvalorizar ou alegar desconhecimento. Independentemente de avaliações partidárias que se possam fazer, o silêncio parece-me sempre um erro, sobretudo da parte de quem integra órgãos de soberania democráticos. Afinal de contas, entre o silêncio e a cumplicidade vai uma distância curta. No mínimo, ajuda a que tais radicalismos se sintam legitimados. No máximo, pode ser uma mera questão de tempo até que tais radicalismos penetrem nas franjas dos próprios partidos.

O segundo risco é o da publicidade. Denunciar corresponde frequentemente a chamar a atenção para o conteúdo denunciado — e, consequentemente, a aumentar o seu alcance. Esta semana, quando um grupo extremista auto-denominado “anti-fascista” incendiou um outdoor do CH, glorificando a violência nas ruas e menorizando a democracia parlamentar, as imagens circularam amplamente, com dois efeitos perversos: o de maximizar o número de visualizações do comportamento intimidatório dos extremistas e o de justificar um discurso de vitimização por parte do CH que, como partido populista e alvo do ataque, se alimenta precisamente destes ambientes hostis e persecutórios. Pior era difícil: ganham ambos e, por isso, ambos têm todos os incentivos para elevar a crispação e gerar novos episódios de violência. Como travar isto? Deixar de o noticiar ou repudiar publicamente não pode ser opção. Falta encontrar um equilíbrio que não converta esse repúdio em combustível para mais radicalismo.

O terceiro risco é o da prova de conceito. O radicalismo anti-democrático germina sob o pressuposto de que as instituições democráticas estão corrompidas ou são demasiado fracas para resolverem os problemas sociais que inquietam a população. Cada falha do regime democrático é explorada como evidência desse pressuposto e legitima o argumento de quem pretender fazer das ruas o seu palco de combate político. Compete ao regime democrático corrigir as suas falhas e tentar enquadrar estas vozes críticas no debate institucional. Mas há situações que levam esse desafio ao limite. A manifestação “anti-islâmica” convocada para o próximo sábado e não-autorizada pelas autoridades públicas exemplifica-o. Os organizadores pretendem manifestar-se contra a imigração no coração de uma área residencial com acessos estreitos e milhares de imigrantes de origem asiática, forçando os limites da conflitualidade social e da segurança pública (factores que levaram à proibição). Mas, como argumentou António Barreto, a proibição tout court não pode ser o caminho num regime democrático, pois é contrária aos princípios de uma sociedade livre (por mais erradas que sejam as motivações dos organizadores) e, além disso, legitimaria a vitimização política dos organizadores. Uma nova localização seria o ideal, permitindo a realização da manifestação em condições de segurança — mas também diminuindo o impacto da iniciativa, pelo que os organizadores se opõem. São os alicerces da democracia a serem testados.

Nos últimos 30 anos, desde o desmantelamento das FP-25, a democracia portuguesa (através dos partidos) mostrou-se capaz de absorver movimentos anti-democráticos, pacificando-os e integrando-os nas regras democráticas. Receio que isso possa estar a acabar e que, nos próximos tempos, brotem novos radicalismos anti-democráticos e tendencialmente violentos. O ar do tempo — repleto de intolerância, de wokismo, de cancelamentos sociais — está propício. E o contexto político também: se o CH obtiver uma expressão eleitoral significativa nas próximas legislativas, como as sondagens apontam, é provável que se multipliquem os protestos intimidatórios nas ruas, sob o estandarte fascizante do “anti-fascismo”.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR