Regra geral, basta dar-se entrada de uma denúncia no Ministério Público que é aberto um inquérito.

A denúncia não está sujeita a formalidades especiais. Qualquer pessoa pode, se assim o entender, dirigir-se ao Ministério Público e dar-lhe conhecimento da prática de um crime, que até pode ter sido cometido por incertos, sendo isso suficiente para se dar o início a uma investigação.

Mesmo quando se esteja diante de uma denúncia anónima, se o que participado se mostrar suscetível, ainda que em abstrato, de constituir um crime, o Ministério Público procede à abertura da fase de inquérito e está obrigado a praticar todos os atos que entenda relevantes para investigar o sucedido.

A partir daí, a lei faz referência a “prazos máximos de duração de inquérito”. Textualmente, o que prevê o Código de Processo Penal é que o Ministério Público encerra o inquérito, arquivando-o ou deduzindo acusação, nos prazos máximos de seis meses, se houver arguidos presos ou sob obrigação de permanência na habitação, ou de oito meses, se os não houver.

Supostamente, olhando para este artigo, fica-se com a sensação de que se o Ministério Público não der cumprimento a esses prazos, alguma consequência daí resultará. Que ocorre uma nulidade, por exemplo, ou que se perde a oportunidade se acusar.

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A verdade, porém, é que não há nenhum. Se um dado inquérito prosseguir por quatro, seis ou mesmo dez anos, não é cometida nenhuma ilegalidade processual.

Há apenas uma exceção: se houver arguidos constituídos e os mesmos se encontrarem sujeitos a medidas de coação, por exemplo, as mesmas poderão caducar. Uma pessoa não pode ser mantida, indefinidamente, em prisão preventiva, sem que haja uma acusação e submissão a julgamento dentro do prazo máximo previsto na lei.

O problema é que, nos restantes casos, nenhuma consequência específica se verifica. Se num determinado dia for tornado público que um cidadão está a ser alvo de uma investigação criminal, esta pode continuar a correr indefinidamente e pouco se possa fazer para combater isso.

Vejamos, é verdade que todo o cidadão se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação. Trata-se de um princípio que até está previsto na Constituição da República Portuguesa, ao lado de um outro, que prevê que o arguido deve ser julgado no mais curto espaço de tempo possível (embora não se concretize que prazo é esse).

Convenhamos, contudo, que na opinião pública esse princípio de pouco importa. A simples circunstância de se tornar púbico que uma pessoa figura como arguida num processo criminal que envolva crimes de natureza grave (corrupção, branqueamento de capitais ou fraude fiscal, para dizer alguns) pode ser fatal para a sua reputação e não será pelo facto de se dizer que a presunção de inocência prevalece que isso impede que o mal fique feito. Aliás, até já há várias empresas e bancos que têm em conta a chamada “adverse media” que exista contra uma determinada pessoa, servindo-se disso para sobre a tomada de decisões, seja para a contratar, seja para estabelecer com a mesma relações de negócio.

Em caso de eleições, então, a situação pode ganhar contornos ainda mais gravosos, com relevantes consequências a nível do funcionamento do sistema democrático e correndo-se mesmo o risco de coartar o exercício de direitos de cidadania por parte dos envolvidos.

Não ponho em causa que, nos casos mais complexos, pode haver a necessidade se efetuar perícias contabilísticas, informáticas ou financeiras, ou que se tenha de pedir informações a autoridades ou instituições no estrangeiro, o que, regra geral, causa sérios atrasos na condução das investigações.

Para que se tenha noção, sempre que se mostra necessário notificar alguém fora da União Europeia (nem que seja para o ouvir como simples testemunha), ou obter dados relativos a contas bancárias abertas em jurisdições offshore, há sempre uma enorme dificuldade em concretizar essas diligências, por falta de colaboração ou burocracia em excesso, e o Ministério Público (como é evidente) não pode ser visto como culpado disso suceder. De resto, investigar simples furtos não é o mesmo que investigar crimes de corrupção ou de branqueamento de capitais.

No entanto, se isso é tudo verdade, não deixa de ser certo também que as coisas não podem continuar exatamente como estão. Não se pode ignorar o peso que pode ter para a vida e reputação de uma determinada pessoa o facto de ser constituído arguido, ou de até ser só encarado como suspeito, não se mostrando justificável que essa “espada de Dâmocles” continue a pairar sob a sua cabeça, sem fim à vista, apenas e só porque se têm de investigar a prática de crimes.

Ora, a primeira solução que proponho é que, a partir do momento em que seja ultrapassado o prazo máximo de duração de inquérito, seja ele qual for, o processo deve automaticamente sair das mãos do procurador do Ministério Público que o está a conduzir o processo e ser transferido para o seu superior hierárquico. Passará a ser este a dirigir e supervisionar os trabalhos, sem necessidade de reclamação hierárquica ou pedido de aceleração e qualquer prorrogação subsequente que se justifique terá de passar a depender de decisão do juiz de instrução criminal, depois de ouvidas as partes.

E, na eventualidade de este último entender que não se justifica prorrogar a investigação, fixará então um prazo para a sua conclusão em definitivo, sob pena de, então sim, rejeição da acusação que vier a ser proferida, ou outra consequência que se considere razoável. Paralelamente, o segredo de justiça cairia, tanto a nível interno como externo.

Ter-se-ia, contudo, de introduzir uma exceção, para os casos em que o atraso se devesse a eventuais perícias em curso ou a pedidos de elementos dirigidos a autoridades estrangeiras, através de cartas rogatórias. Nessas circunstâncias, os prazos máximos de duração de inquérito teriam de suspender-se, assim não se impedindo que o Ministério Público de exercer, eficazmente, a ação penal, ao mesmo que se acautelariam os direitos de quem estivesse a ser investigado, numa lógica de equilíbrio de forças.

De facto, convenhamos que há hoje inquéritos que persistem ainda ao fim de quase quinze anos. As linhas de investigação já foram tantas e tão variadas que, a certa altura, os visados até já perderam a noção do que está a ser tratado ou do que pode vir a acontecer. Alguns arguidos até já faleceram e outros já possuem esse estatuto há tantos anos que, basicamente, a sua condição civil passou a ser de suspeito de crimes, sejam eles quais forem.

Em segundo lugar, deve passar a criar-se mecanismos mais apertados para o seguimento de denúncias anónimas. Como disse acima, sempre que o Ministério Público recebe uma denúncia anónima, isso determinará à partida a abertura de um inquérito, a não ser que da mesma não se retirem indícios da prática de crime ou se os factos não forem suscetíveis de constituir crime.

No entanto, falamos de uma apreciação que continua ainda a ser muito abstrata, impondo-se por isso que se estabeleçam critérios mais objetivos para que se aceite a abertura de um inquérito, além de que se devia especificamente prever o prazo para a tomada de uma decisão quanto ao arquivamento liminar.

Com efeito, o atual Código de Processo Penal não contempla, expressamente, a figura do despacho de arquivamento liminar de inquérito, apenas se dizendo que o Ministério Público tem o dever de assim proceder nas situações em que lhe sejam participados factos que não constituam um crime. Entendo que se deveria passar a fixar obrigatoriamente um prazo para isso ocorrer, sobretudo quando estejam em causa denúncias anónimas, sem prejuízo de, mais adiante, caso venham a ser recolhidas mais provas, a investigação possa ser reaberta.

Em terceiro lugar, os suspeitos deveriam também começar a ser notificados das decisões que sejam tomadas ao longo do inquérito, não só os arguidos.

Talvez não haja uma perceção exata disso, mas aos suspeitos, no atual regime jurídico, não são reconhecidos praticamente direitos nenhuns. Podem pedir para ser ouvidos, é certo, mas o problema é que, se tal suceder, sê-lo-ão à partida na qualidade de arguidos, o que, como é evidente, poderá desencorajar essa sua iniciativa.

Tirando isso, não podem fazer mais nada. Não podem consultar o processo (ou podem, como qualquer cidadão, mas à partida esse acesso ser-lhes-á negado), não podem arguir nulidades, não podem recorrer, não podem requerer a aceleração do processo… nem sequer têm o direito a ser notificados do que quer que seja.

O direito francês tem uma solução para esse tipo de situações, que é a chamada “testemunha assistida”.

No processo penal francês, temos o arguido (“mise en examen”), a testemunha (“témoin”) e a testemunha assistida (“témoin assisté”).

A testemunha assistida, basicamente, é a pessoa que se encontre implicada como suspeita numa investigação criminal, mas em relação à qual inexistem ainda os chamados “indícios graves e/ou concordantes”.

Tem direito a ser representada por um advogado, a aceder ao processo, a requerer a prática de diligências de prova, a arguir nulidades, a pedir a anulação ou repetição de atos processuais, a recorrer de despachos, bem como de requerer que o inquérito se seja encerrado.

De facto, voltando ao caso português, se um suspeito pedir para ser ouvido no processo penal, sê-lo-á à partida na qualidade de arguido. Por imposição legal, não há grande alternativa: a partir do momento em que corra inquérito contra pessoa determinada em relação à qual haja suspeita fundada da prática de um crime, e se a mesma tiver que, em algum momento, prestar declarações perante o Ministério Público ou um órgão de polícia criminal, não pode deixar de ser constituída como arguida, prestando termo de identidade de residência.

A partir desse momento, passam a ser-lhe reconhecidos vários direitos, como por exemplo o direito ao silêncio ou o direito de ser informado dos factos que lhe sejam imputados.

O problema é que, como se disse, e pese embora o suposto princípio da presunção de inocência, passar a arguido não é, propriamente, algo positivo. Não se tenha dúvidas, de facto, que se estiver em causa um processo altamente mediático, a circunstância de se passar de suspeito a arguido formalmente constituído terá um peso acrescido em termos de opinião pública, se essa informação vier a ser conhecida (e, regra geral, dificilmente não o é).

O estatuto de “testemunha assistida” foi a solução encontrada pelo regime jurídico francês para dar resposta a essa questão, permitindo às autoridades que um suspeito seja ouvido sem que tenha de ser obrigatoriamente constituído arguido.

Com uma importante nuance: é que a testemunha assistida não está obrigada a responder a todas as questões que lhe sejam colocadas. São-lhe reconhecidos praticamente todos os direitos atribuídos ao arguido, mas sem que tenha de ser sujeita a toda a carga negativa que, geralmente, se encontra associada ao mesmo.

Mais: quem, entretanto, já possua no processo a qualidade de arguido até pode pedir ao juiz de instrução criminal que esse seu estatuto seja “despromovido” ao de testemunha assistida. Como é lógico, isso não impede que, mais adiante, possa vir a recuperar a posição de arguido, se a prova recolhida o justificar. Mas não deixa de ser uma importante nuance a ter em conta, quanto mais não seja do ponto de vista externo e no sentido de respeito da dignidade da pessoa implicada numa investigação.

É que repare-se no seguinte: a investigação até pode acabar por não dar em nada, porque a prova não era suficientemente forte desde o início. Mas então, fará sentido equiparar arguidos contra os quais já existam fortes indícios (e que poderão ter justificado, até, aplicação de medidas de coação) àqueles outros em relação aos quais se mostra provável que o desfecho possa vir a ser o arquivamento, só porque existe uma obrigação legal de investigar tudo?

E para finalizar, um aspeto particularmente assustador, relacionado com este tema, que é o das suspensões de contas bancárias por suspeita de branqueamento de capitais. De acordo com a lei, quando um banco detete uma operação suspeita, reporta-o às autoridades, podendo o Ministério Público decretar a partir daí o congelamento da conta. Subsequentemente, com a instauração de inquérito criminal, compete ao juiz de instrução criminal decidir sobre a renovação dessa decisão de congelamento, por mais três meses.

A questão é que, subsequentemente, o congelamento poderá continuar a ser renovado, a cada três meses, sendo possível que se mantenha, no limite, por mais de um ano. No entanto, durante esse longo período, ninguém teve de ser constituído arguido, não há consequências para a falta de tomada de uma decisão rápida, com a agravante de que, estando o processo sujeito a segredo de justiça, quem seja visado (porque é ainda um simples suspeito) nem sequer tem o direito de consultá-lo e tentar perceber como se pode defender e explicar o sucedido. Mas continua sempre impedido movimentar a sua conta bancária.

É muito fácil apresentar como justificação para os atrasos nas investigações a falta de meios e recursos. E os suspeitos, que não têm direitos, que se habituem a esse estatuto. Em vez de ter de ser o Estado a demonstrar que são culpados, eles que expliquem ao público o motivo pelo qual ainda não foram interrogados e acusados.

É isto que pretendemos mesmo para a nossa justiça penal?