Em Portugal, o processo criminal inicia-se, em regra, com uma denúncia, apresentada junto dos órgãos de polícia criminal ou do Ministério Público.

A partir desse momento, e caso não se verifique logo um arquivamento liminar, dá-se início à chamada fase de inquérito, durante a qual são ouvidas as testemunhas, são recolhidas provas, são eventualmente ordenadas diligências de buscas e perícias e, ainda, são confrontados os suspeitos (que passam a partir daí a ser arguidos), no sentido de lhe serem tomadas declarações (a não ser, claro está, que optem pelo silêncio).

Terminada essa fase de inquérito, ou de investigação, cabe ao Ministério Público tomar uma decisão: ou acusa, ou arquiva ou opta pela suspensão provisória do processo.

Na eventualidade de ser deduzida uma acusação, e caso o arguido não venha a requerer a abertura da instrução (ou caso requeira a instrução e seja pronunciado no final da mesma), o processo segue para julgamento.

Ora, é durante o julgamento que, verdadeiramente, o processo se torna contraditório. Ou seja, é nessa fase que o arguido pode apresentar toda a sua defesa, explicando-se diante um juiz, sendo-lhe permitido apresentar toda a sua prova e, até, através do advogado que o represente, contra inquirir cada uma das testemunhas indicadas pelo Ministério Público, com o objetivo de auxiliar o tribunal na tomada de uma decisão, tendo em vista alcançar aquilo que se chama de verdade material.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Com uma importante nuance: é que o arguido não tem de provar nada. Basta-lhe contrapor o que é alegado pela acusação. Uma vez que todo o cidadão se presume inocente até trânsito em julgado, é sobre o Ministério Público que recai o chamado ónus da prova.

E assim, se depois de concluída a audiência, o tribunal se deparar com dúvidas, não há outra alternativa senão a de absolver o arguido. Não é possível um juiz ter dúvidas e, ainda assim, proferir uma decisão de condenação.

Isto leva-nos a uma das principais questões do processo penal. É que quando se acusa alguém, pode contar-se uma versão dos factos que aparenta ser altamente plausível, com uma narração perfeita do sucedido, de tal forma que, quem a lê, fica convencido que está perante a verdade.

No entanto, no final do dia, uma acusação não é nem mais, nem menos, que isso mesmo: uma simples versão dos factos. E versões dos factos há muitas.

E exemplos não faltam, de facto, de inúmeros processos mediáticos, em que depois de uma acusação de centenas e centenas de páginas (algumas vezes até milhares) se chega ao final do julgamento e ninguém é condenado.

Porque quando se chegou a julgamento, a final a prova recolhida não era assim tão forte.

Como é evidente, isso explica-se por inúmeros motivos, já que cada caso é um caso, mas ainda assim pergunto: qual a razão pela qual quem dirige a investigação e elabora a acusação não é depois quem, durante a fase de julgamento, comparece a defendê-la?

Do lado da defesa, por exemplo, temos advogados que, desde o primeiro momento em que o seu cliente é interrogado, vão acompanhando e conhecendo o processo, sendo eles quem mais tarde marca presença ao longo de todo o julgamento, obtendo por essa via um conhecimento aprofundado que beneficia quem representam.

No caso do Ministério Público, porém, a tradição é de que, em cada fase, se designe um determinado procurador, em função da hierarquia que o mesmo ocupe.

E, por causa disso, durante um mesmo processo penal, temos os procuradores que investigam e elaboram a acusação, depois temos os procuradores que estão presentes em julgamento, de seguida temos os procuradores que atuam diante do Tribunal da Relação, e mais à frente temos ainda outros procuradores junto do Supremo Tribunal de Justiça, e assim sucessivamente.

Salvo o respeito por quem defenda esta solução, confesso que não encontro argumentos válidos que a sustentem. Sobretudo em processos altamente complexos.

Não deixa de ser verdade que o Ministério Público não é propriamente uma parte do processo, e que todos os magistrados que dele fazem parte estão obrigados a obedecer a princípios de legalidade, sendo por isso dotados de autonomia, podendo mesmo recorrer de decisões finais com as quais não concordem, incluindo de condenação, não estando assim vinculados a pedir condenações, mesmo que não se convença delas, depois de ouvida toda a prova.

E é essa uma das razões, de facto, para que se defenda a alternância da representatividade do Ministério Público: tem de haver desprendimento em relação ao texto de cada acusação.

Mas convenhamos que, hoje em dia, e mais uma vez nos processos mais mediáticos e complexos, uma acusação não deixa de ter um peso enorme na comunidade. Quando se decide acusar um determinado político ou governante, por exemplo, isso tem de ter significado, sob pena de banalização da justiça.

Ora, é um facto que quem constrói uma acusação, sobretudo depois de acompanhar (não raras vezes, anos a fio) uma fase de investigação e de analisar todos os meios de prova é quem melhor conhece todos os seus pontos fortes, bem como os seus pontos mais débeis.

É esse alguém quem, afinal de contas, sabe a razão pela qual se decidiu acusar A, em vez de B; quem sabe por que se seguiu por uma determinada linha de investigação, em vez de outra; e também, e acima de tudo, quem sabe o que cada testemunha vale, e tem ainda presentes todos os volumes do processo na sua cabeça, mais do que qualquer outra pessoa.

Não pretendo com isto – como é óbvio – argumentar que os representantes do Ministério Público na fase de julgamento não são competentes para exercer a sua função. Nada disso e, aliás, não posso deixar de realçar a excelência e dedicação de todos os procuradores com quem tenho tido o privilégio de trabalhar, ao longo dos anos.

O meu ponto é bastante mais simples: quando se está diante de uma acusação com centenas de páginas e que é suportada por dezenas de volumes, não será sempre a melhor pessoa para a defender quem precisamente a elaborou, independentemente do empenho e profissionalmente de quem venha depois a conhecê-la pela primeira vez?

Não ignoro, com estas minhas observações, que há escassez de meios humanos e é certo que, muitas vezes, o ideal não é possível atingir.

Mas entendo que, numa justiça moderna em que, cada vez mais, os processos se revelam mais complexos, é necessária uma evolução. Em relação à inteligência artificial, por exemplo, os advogados nunca vão ser substituídos por ela: o que vai suceder é que os advogados que não privilegiam o uso da inteligência artificial podem vir a ser substituídos por aqueles que o façam. Mudanças de realidades trazem novos desafios.

Aliás, no processo principal do BES, foi precisamente isto que sucedeu. Durante a fase de instrução, que durou quase dois anos, marcou presença uma equipa de procuradores que se ambientou às complexidades do processo e se preparou para a fase de julgamento. Honra lhes seja feita.

De resto, há ainda uma outra vantagem para o que defendo: é que se quem elabora uma acusação, tiver depois que a sustentar em julgamento, percebe o quão difícil é, muitas vezes, demonstrar o que se escreve diante de um tribunal.

Como acima disse, há acusações que aparentam ser perfeitas e extremamente bem articuladas. Mas não deixam, porém, de ser apenas uma versão dos factos. Uma de entre muitas.