Texto originalmente publicado pelo portal dos Jesuítas em Portugal, Ponto SJ.
Quarenta e cinco anos depois do discurso inaugural que marcou o 25 de Abril, agora que se assinala o 25 de Novembro, é relevante perguntar: a que Estado chegámos nós?
Reza a lenda que na madrugada do dia 25 de Abril de 1974 o Capitão Salgueiro Maia se dirigiu aos seus soldados dizendo-lhes: “todos nós sabemos que existem diversos tipos de Estado: os Estados Liberais, os Estados Sociais Democratas, os Estados Socialistas… mas nenhum deles é pior do que o estado a que isto chegou”. Pouco depois, partia de Santarém a coluna militar que haveria de tomar a sede do Governo, no Terreiro do Paço. Quarenta e cinco anos depois desse discurso inaugural, é relevante perguntar: a que Estado chegámos nós? Pergunta relevante – num dia como o de hoje – em 1975, em 1984, em 2019…
É certo que todo o ponto de vista é a vista de um ponto. O meu ponto de observação é o de um padre católico de meia idade, membro da Companhia de Jesus, que já viveu em três continentes, sem com isto perder raízes no interior de Portugal, onde cresceu e onde actualmente vive. Subentendido está que também os padres podem e devem pensar, expressar-se e participar como cidadãos na construção da cidade, a partir do seu contributo específico. O mesmo se aplica, evidentemente, à Igreja Católica, como parte do todo que é a Sociedade, sem complexos de superioridade ou de inferioridade, buscando sempre o bem comum em colaboração com todas as pessoas de boa vontade. Partindo da experiência quotidiana, decidi trazer a estas linhas três domínios da realidade que um sacerdote toca, de forma directa ou indirecta, na sua atividade: a presença no território, a ação social e a educação. Isto porque nem só de missas vive o padre…
No centro do país estão ainda bem vivas as marcas dos incêndios de 2017. Foi a maior catástrofe ambiental a que assisti. Passado o impacto mediático, este Portugal esquecido e pobre voltou ao escondimento habitual. O lugar onde reside boa parte da nossa identidade cultural – nas pessoas e na sua forma de habitar o meio ambiente – está desfigurado pelo abandono e pelo desordenamento florestal, promessa de novas tragédias (como aconteceu este ano em Mação). Há que olhar, “com olhos de ver”, para o despovoamento e consequente colapso do modelo sócio-económico do minifúndio. Diante disto o Estado, e quem nele tem responsabilidades, revelou-se incapaz de mobilizar o país para uma causa mais que necessária: conjugar energias e saberes para revitalizar o interior. Em vez disso exigiu a limpeza de terrenos e legislou multas, transferindo o peso da questão para os proprietários, sem cuidar se isso é justo ou se os mesmos têm recursos (idade, dinheiro…) para o fazer! Assim se vai desencorajando a pequena e média iniciativa privada, acentuando a sangria demográfica, e em tantos lugares as Câmaras Municipais, escolas e repartições estatais são o empregador que resta…
No que diz respeito à ação social, vemos como os requisitos para as IPSS se vão tornando cada vez mais estritos, quase estrangulando a sua actividade. Inspeções sem cabeça e sem alma procuram retificar cada detalhe, sem se importar se é oportuno ou necessário. São regulamentos e mais regulamentos feitos por almas teóricas que nunca tiveram de pagar um ordenado a ninguém (e sempre tiveram o seu assegurado). Talvez pensem que a sustentabilidade de uma organização seja um mero detalhe “economicista”…O Estado – quem o representa – não parece estar muito interessado em que haja quem queira ajudar minorar as necessidades sociais. Despreza-se assim o talento, os recursos e o esforço de comunidades inteiras. Encaminhamo-nos para um tempo em que o Estado quer ser agente único da ação social?! Mas a solidariedade individual ou colectiva é uma expressão irrenunciável de humanidade e sinal da vitalidade de uma Sociedade!
No que diz respeito à educação, com grande dor assisti ao encerramento de Colégios Católicos com contrato de associação, que durante décadas prestaram um serviço público educativo de qualidade a populações periféricas. Serviço que até ficava mais barato ao Estado, pois este não tinha de se encarregar da manutenção dos edifícios. Um país onde se fecham escolas que funcionam bem é um país descentrado e desatento. Levantam-se assim questões de fundo: será que todo o serviço público deve ser estatal? O Estado olha para a Igreja Católica (ou para qualquer outra instituição) como um parceiro ou um competidor a “abater”? Levar-nos-ia também longe o tema das imposições ideológicas que começam a inundar programas escolares, forjando um “pensamento único” e uma nova “situação”, onde não faltam modernos e sofisticados mecanismos de censura.
Aos três domínios mencionados, podemos somar a percepção de mais alguns elementos perturbadores: a máquina fiscal minuciosamente inquisitorial e implacável no que toca a receber, mas lenta em honrar dívidas; a demissão do papel de árbitro eficaz em relação a instituições sem rosto que regem a nossa vida diária (dos bancos, às operadoras de telefone e net…), entidades que com esmero nos procuram “fidelizar”, mas só a muito custo ajudam a resolver os problemas que criam. Uma Sociedade “estatizada” é uma Sociedade pobre – e nem por isso amiga dos mais pobres – por abafar a atenção inteligente ao caso particular e a gratuidade que anima e motiva tanto pessoas como comunidades. Estas e outras tantas questões fazem-me suspeitar que não estejamos longe de um Estado de asfixia!