Uma conhecida marca que comercializa, entre outros, produtos cosméticos e medicamentos não sujeitos a receita médica iniciou, no mês em que se comemora o Dia da Mulher, uma campanha publicitária intitulada “Não fica bem”.

A referida campanha segue a linha do empoderamento feminino, instando as mulheres, de todas as idades, a sentirem-se bem com as suas opções e a afirmarem-se contra aceções da sociedade, passíveis de condicionar determinados comportamentos, quando adotados pelas mulheres.

O anúncio resume-se a várias afirmações sobre as imagens que lhes correspondem, em que a frase “não fica bem” precede um conjunto de práticas ou condições associadas às mulheres para, depois, rasurar a palavra “não”, procurando enfatizar o repúdio por esse tipo de ideias e exortar as mulheres a não se deixarem condicionar ou influenciar e a ficarem bem consigo.

No que me diz respeito, a campanha funcionou em pleno e, devidamente empoderada, vejo-me tomada por incontrolável desejo de manifestar a minha opinião, fazer ouvir a minha voz, sem recato ou pudor, sem receio da polémica e da controvérsia, movida apenas pelo objetivo maior, que o anúncio promove, de “ficar bem comigo”.

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E para ficar bem comigo devo dizer que não gostei particularmente do anúncio e que preferia que a empresa, para promover a venda de seus produtos, escolhesse outra forma de o fazer, que não passasse por transmitir a imagem de uma sociedade portuguesa atrasada, onde a opção de uma mulher por não ter filhos, ou ter três filhos, ou viajar sozinha, ou se maquilhar, ou casar de novo, ou mesmo pintar o cabelo de cor de rosa ou azul é tema ou sequer uma questão.

É, ainda, possível ouvir no anúncio que “não fica bem” envelhecer, sentir calores, ter uma nova relação, engravidar…

Tudo isso narrado e apresentado num leve tom de revolta, que, julgo eu, faria mais sentido noutras paragens por esse mundo afora, onde, de facto, muito daquilo que o anúncio assinala é tabu ou merecedor de crítica, onde o papel das mulheres é menorizado, onde estas são oprimidas, condicionadas nas suas escolhas pelos ditames de sociedades arcaicas e intolerantes, sem uma verdadeira palavra sobre o seu futuro e a sua própria felicidade.

Embora alinhada com o objetivo da campanha e confiante nas boas intenções de quem a criou, não posso deixar de considerar que a mesma, ainda que de forma implícita, apresenta uma visão da sociedade portuguesa desajustada da realidade.

Admito que poderão existir sectores da nossa sociedade onde ainda se considere reprovável uma mulher optar por ser mãe solteira, ter uma “nova relação”, uma relação fora do casamento, ou com uma pessoa do mesmo sexo, ou casar de novo, sobretudo nas camadas mais idosas da população ou no “Portugal profundo”, mais conservador, menos aberto, cosmopolita e urbano.

Quero, todavia, crer que essas reações estão longe de ser representativas, que não espelham a evolução dos nossos costumes e que, atualmente, inexiste, na sociedade portuguesa, qualquer sentimento generalizado de subalternização da mulher ou de crítica e oposição às suas opções, condições e comportamentos.

Pelo contrário, a tendência em Portugal vai, e muito bem, no sentido de uma cada vez maior liberdade e afirmação da mulher.

Em Portugal, 58% dos diplomados no ensino superior, em 2022, eram mulheres. No mesmo ano, em 23% dos casamentos celebrados, as mulheres eram divorciadas (PORDATA). Atualmente, um terço das mulheres portuguesas em idade fértil está emigrada e para cada cinco crianças nascidas em território português, filhas de mãe portuguesa, há uma criança, igualmente filha de mãe portuguesa, nascida no estrangeiro (Dados do Observatório da Emigração).

As mulheres portuguesas divorciam-se, casam-se de novo, não se casam, viajam e vivem fora do país, sozinhas ou acompanhadas, têm os seus filhos, solteiras ou casadas, em Portugal ou no estrangeiro, constituem as suas famílias de variadas formas, já são maioria no ensino superior, ocupam, progressivamente, lugares em profissões tradicionalmente masculinas, fazem o seu caminho como querem, quando querem e com quem querem.

Basta andar pela rua para ver a quantidade de cabelos coloridos que enfeitam a cabeça das portuguesas de todas as idades e para constatar que, na verdade, ninguém quer saber, porque, salvo destacadas exceções, todos estão, felizmente, bem consigo e com os outros.

À exceção de algum sobrolho levantado por parte de alguma tia-avó mais esquisita, não estou a ver a que outro susto poderá estar sujeita, em Portugal, uma mulher que resolva pintar o cabelo de azul ou de qualquer outra cor menos usual.

Apesar de considerar que os temas abordados pela campanha não constituem um problema para a maioria dos portugueses, trazê-los para a discussão pública é sempre útil, pois nunca é demais recordar que as pessoas devem, independentemente do seu género, idade ou condição, ter a liberdade de assumir as suas opções, sem se sentirem inibidas, intimidadas ou condicionadas nas suas escolhas pela reação da sociedade e dos seus mais próximos.

O que me incomoda no anúncio não é, assim, a sua mensagem, que, julgo, é a da necessidade de nos aceitarmos como somos e de aceitar os outros como são, sem limites impostos por aquilo que fica ou não fica bem. Sobre isso estamos todos de acordo.

O que não me agradou foi a forma escolhida para transmitir essa mensagem, porque se o tema é o bem-estar das mulheres, sua valorização e liberdade de escolha, haveria formas mais positivas e, atrevo-me a dizer, mais bonitas de o fazer.

Por que não um anúncio que mostre a graça e a força das mulheres, maioritariamente de origem africana, que, de madrugada, partem de suas casas para limpar os escritórios de Lisboa? São mulheres que, silenciosas, asseguram que quando chegamos ao nosso local de trabalho o encontramos limpo, pronto para nos receber. Trabalham arduamente para sustentar as suas famílias e podemos vê-las, mal raiou o dia, a sair dos edifícios, cansadas certamente, mas alegres, brincando umas com as outras, abraçando a dura vida que levam com um sorriso nos lábios. Parecem, diria eu, surpreendentemente felizes e de bem consigo.

Por que não um anúncio que mostre uma mulher feliz que, com enorme esforço, mas igual energia e disposição, cria os seus filhos, tem uma carreira exigente e conta com a ajuda de um companheiro ou companheira que com ela partilha tarefas, responsabilidades, alegrias e tristezas? Escolheu ser mãe e ter uma carreira, não abdicar de nada, ama a sua família e o seu trabalho, tem uma agenda cheia e chega cansada ao final do dia, mas está, sem dúvida, de bem consigo.

Por que não um anúncio dedicado às nossas jovens licenciadas, que emigraram deixando Portugal para trás à procura dos seus sonhos e que são verdadeiras embaixadoras da coragem, do mérito das nossas gentes e deste país maravilhoso que às vezes somos. Essas jovens, corajosas e decididas, partem, muitas vezes sozinhas e, chamando a si as rédeas do seu futuro, estão, certamente, de bem consigo.

Diz quem criou a campanha que a ideia é dizer às mulheres que elas não estão sozinhas, mas as imagens do anúncio mostram as suas protagonistas exatamente assim, solitárias nas suas escolhas, em vez de rodeadas por familiares e amigos que as aceitem exatamente como são.

Não foi essa a escolha dos criativos da campanha, que, assombrados pelo “espírito do tempo”, escolheram a narrativa de barricadas e trincheiras, em que há sempre uma guerra a travar, ou uma nova cruzada a iniciar, onde quem não está comigo está contra mim….

Em 1982, Amália Rodrigues, numa muito bem-humorada música (texto de Carlos Paião), manifestava ao Sr. Extraterrestre, que acabava de pousar no seu quintal, preocupação por ser vista, pela vizinha, sozinha com um estranho em sua casa.

Se o Sr. Extraterrestre regressasse hoje a Portugal e pudesse reencontrar Amália, estou certa de que esta lhe apresentaria a vizinha e, maquilhada e vestida como bem entendesse, talvez fosse tomar um copo com o Sr. Extraterrestre.  Se lhe apetecesse, viajaria na sua nave espacial…sozinha! De caminho, falar-lhe-ia da sua “nova relação”, se a tivesse, abanaria um leque, com graça e naturalidade, se os calores a assolassem e tudo isso com um sorriso rasgado, num rosto bonito e autêntico, vincado pelas rugas acumuladas em anos de alegrias, saudades, tristezas e muita vida. A vida de uma mulher que, livre, confiante e resolvida, está sempre bem consigo.

Bem sei que, no contexto atual, haverá quem ache que a opinião que expresso não me fica nada bem, mas poder expressá-la é um direito que sei que tenho e que quero exercer em nome do apelo a um discurso mais positivo, moderado e equilibrado, que tanto tem faltado nos dias que correm, em que quase tudo é extremo e extremado.

Aqui chegada, impõe-se uma homenagem aos objetivos da campanha, mas não à sua forma.  Junto-me aos seus criativos para desejar que todas as pessoas, não apenas as mulheres, tenham a força necessária para, doa a quem doer, custe o que custar, fazerem as suas escolhas, livremente, imunes a preconceitos e condicionamentos sociais, porque o que nos fica mesmo bem é o que nos faz feliz.