Ao contrário do que poderia supor-se, a resposta não deve ser um acrítico “cumpra-se a lei”, isento de qualquer ponderação. Depende do juízo que o Governo fizer sobre a consistência dos requerimentos de fiscalização sucessiva que estão pendentes no Tribunal Constitucional.

Depois de um longo e atribulado processo legislativo – que incluiu duas fiscalizações preventivas da constitucionalidade e dois vetos políticos –, a lei da eutanásia foi finalmente publicada no Diário da República de 25 de maio de 2023. Na última semana, a lei voltou à ribalta por conta da sua não regulamentação, com vozes a acusar o Governo de pôr em causa o Estado de Direito.

Mas vamos aos factos:

  1. A lei da eutanásia estabeleceu um prazo de 90 dias para o Governo aprovar a respetiva regulamentação.
  2. Estabeleceu ainda que apenas entraria em vigor 30 dias após a publicação dessa mesma regulamentação.
  3. Não tendo aprovado a regulamentação até ao 90.º dia do prazo, o Governo então em exercício incumpriu a lei e, com isso, desrespeitou a decisão da Assembleia da República.
  4. O Governo assumiu publicamente esse incumprimento através de várias declarações de Manuel Pizarro, ao tempo Ministro da Saúde – órgão competente em razão da matéria.
  5. Estribou-se o Ministro da Saúde na suposta “complexidade” da regulamentação, na necessidade de “avaliar as soluções jurídicas” a adotar e na inconveniência de regulamentar a lei de forma “apressada”.
  6. No início de novembro de 2023, 56 deputados do PSD apresentaram no Tribunal Constitucional um extenso pedido de fiscalização sucessiva da constitucionalidade da lei.
  7. Esse requerimento escrutina de forma metódica e exigente praticamente todas as questões de constitucionalidade que aquela lei suscita – algumas delas não cobertas pelos pedidos de fiscalização preventiva formulados pelo Presidente da República.
  8. No final desse mês de novembro, o Ministro da Saúde declarou que colocaria a regulamentação da eutanásia na “pasta de transição” para o novo Governo.
  9. O Executivo manteve-se em plenitude de funções até dia 7 de dezembro de 2023 – data do decreto do Presidente que formaliza a demissão do Primeiro-Ministro.
  10. É pacífico que, mesmo depois dessa data, embora limitado a funções de gestão, o Governo não estava juridicamente impedido de regulamentar a lei em causa.
  11. Em 12 de março de 2024, a Provedora de Justiça – insigne constitucionalista e antiga juíza e vice-presidente do Tribunal Constitucional – apresentou também um pedido de fiscalização sucessiva da constitucionalidade da lei, desta feita dirigido a um conjunto restrito de normas.
  12. A 2 de abril de 2024 tomou posse o XXIX Governo constitucional.
  13. Recentemente, um amplo conjunto de personalidades – culminando num manifesto com 250 assinaturas – têm reclamado a aprovação imediata da regulamentação da lei, sem a qual esta não pode efetivamente entrar em vigor.

Perante estes factos, impõe-se saber se o Governo em funções está obrigado a regulamentar de imediato a lei da eutanásia. Deve fazer agora – o quanto antes – aquilo que o anterior Governo não fez dentro do prazo que o legislador parlamentar lhe fixou?

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A resposta a esta questão, ao contrário do que poderia supor-se, não deve ser um acrítico “cumpra-se a lei”, isento de qualquer ponderação.

Na realidade, segundo a Constituição, o Governo não está apenas sujeito à lei. Como prescreve o artigo 266.º, antes de estar sujeito à lei, o Governo está “subordinado à Constituição”. E, por força do artigo 18.º, tem um dever específico de respeito e de proteção ativa de todos os direitos, liberdades e garantias – começando, naturalmente, pelo direito à vida. Havendo dúvidas sobre se a lei contém soluções normativas inconstitucionais – submetidas à apreciação do Tribunal Constitucional, mas ainda não decididas por este –, fará sentido arriscar uma violação da Constituição e de direitos fundamentais nela consagrados para aplicar agora, rapidamente, uma lei ordinária que está por regulamentar há mais de um ano?

A resposta depende do juízo que o Governo fizer sobre a consistência dos requerimentos de fiscalização sucessiva que estão pendentes no Tribunal Constitucional. Se entender que são meramente dilatórios, deve regulamentar a lei e aplicá-la. Se entender – como parece ser o caso – que as dúvidas de constitucionalidade são legítimas e que disposições importantes da lei podem, efetivamente, vir a ser declaradas desconformes com a Constituição, deve esperar cautelosamente pela decisão do Tribunal Constitucional.

É certo que a lei já passou duas vezes pelo Tribunal Constitucional. Mas, nos processos de fiscalização preventiva, é normal não serem analisadas todas as questões de constitucionalidade que os diplomas legais suscitam. Por regra, apenas as mais evidentes são consideradas, para evitar a entrada em vigor de leis feridas por inconstitucionalidades mais grosseiras ou ostensivas.

Agravando esta limitação natural da fiscalização preventiva, nos requerimentos que formulou, o Presidente da República restringiu deliberadamente as normas da lei submetidas à apreciação do Tribunal Constitucional –, assim excluindo do conhecimento dos juízes várias questões relevantes, suscitadas no debate público então havido e presentes na literatura jurídica sobre o tema.

Também é verdade que o primeiro requerimento de fiscalização sucessiva foi apresentado por deputados do PSD, que votaram contra a lei da eutanásia e podem estar a tentar ganhar pela via judicial o que perderam no Parlamento. Contudo, a leitura do extenso documento permite perceber que – ao longo das suas quase 300 páginas – há várias questões não apreciadas em sede preventiva e que se afiguram pertinentes. Além disso, um segundo requerimento foi apresentado pela Provedora de Justiça, numa decisão que tem certamente grande peso institucional, tanto mais que se sabe ser a atual titular do cargo muito comedida no recurso ao Tribunal Constitucional.

No Estado de Direito contemporâneo, o princípio da legalidade não significa obediência acrítica à lei ordinária – dura lex, sed lex –, sobretudo quando o órgão encarregado da sua aplicação se encontra democraticamente legitimado, como sucede com o Governo. O cumprimento da lei não pode ter primazia sobre a normatividade constitucional. A aplicação da lei não pode fazer-se à custa da Constituição.

Não quer isto dizer, como é óbvio, que o Governo possa furtar-se impunemente ao cumprimento das leis parlamentares. Se o fizer abusivamente, sem um fundamento sólido e credível, responderá, no plano político, perante a Assembleia da República e, no plano jurídico, nos tribunais administrativos – que têm competência para impor o cumprimento da lei e, em particular, para determinar a emanação dos regulamentos legalmente devidos.

Aos que se insurgem agora contra a passividade do Governo, seria bom que lessem com cuidado os requerimentos pendentes no Tribunal Constitucional e que discutissem com seriedade os argumentos neles contidos. Depois, cada um poderá tirar as suas conclusões. Quem sabe descobrem que não há apenas pessoas a favor e contra a eutanásia, numa lógica binária própria dos populismos. Há também quem pretenda uma lei moderada, com soluções jurídicas mais equilibradas e que garantam uma aplicação prática mais segura.

Em todo o caso, para quem tem telhados de vidro, será sempre mais avisado não atirar pedras aos do vizinho!