Aí está a discussão do OE para 2016. Sob a pressão de um contexto internacional de grande incerteza, o orçamento é exigente e com pouca margem de manobra. O Governo pretende virar o ciclo da austeridade anunciando que vai devolver rendimentos às famílias e estimular o crescimento económico, embora pareça ter esquecido as empresas. Oxalá, para todos, que corra bem.

Quem assina por baixo deste Orçamento?

Depois de uma discussão lateral sobre o que é a classe média [i] e de como este orçamento a pode afligir, ficou a saber-se que o Governo tem uma especial preocupação com a reposição imediata dos salários acima dos 1.500 euros na administração pública para aumentar o rendimento das famílias e expandir a economia, mas não hesita em aumentar a receita fiscal, uma parte decorrente do desejado crescimento económico mas também à custa dos consumos mais frequentes da dita classe média. Veja-se o agravamento da tributação sobre combustíveis, o forte agravamento do imposto de selo sobre o crédito ao consumo e também o aumento do imposto sobre o tabaco, apesar de este poder ser “desculpado” como incentivo ao abandono do cigarro. Por isso a classe média olha com alguma desconfiança para esta promessa de melhor rendimento disponível por efeito da diminuição da sobretaxa quando pelo outro lado lhe capturam já, através de novos impostos, qualquer insignificante alívio fiscal.

Por razões diferentes, esta estratégia colhe muitas críticas de todos os sectores, julgando uns que é demasiado arriscada e outros que é um pouco mais do mesmo que vinha do governo anterior. Daí não admirar que o Partido Comunista discorde da estratégia e o BE tenha dúvidas, embora votem a favor. O PSD e o CDS, por sua vez, acham que é apenas destruir o trabalho anterior e votam contra. Os Patrões afirmam que não estimula o investimento. Sindicatos dizem que não favorece o emprego. A Comissão Europeia tem reservas. Não será fácil.

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Receitas e despesas

O cenário em que se desenvolverá o orçamento para a saúde está condicionado pelo enquadramento genérico criado pelo OE em que se destaca o aumento da receita fiscal em +3,5%, o agravamento da despesa efetiva que aumenta em + 5,1% (primária e de capital) e um saldo global e saldo primário que pioram (de 0,9 para 0,4) em termos absolutos. A tudo acresce a grande dúvida se o cenário macroeconómico não estará muito optimista (PIB 1,8%) para o espaço económico em que nos inserimos, criando um risco elevado de confiança na execução (rating/juros) dado que várias das metas orçamentais são expressas num quociente entre o respectivo agregado e o volume do PIB.

O orçamento ganharia em ser disponibilizado num formato mais inovador, mostrando a associação entre a previsão da despesa e as prioridades das políticas que são propostas no programa do Governo. Poderiam e deveriam ser descritos os meios empregues para alcançar ganhos de eficiência, face ao elevadíssimo valor previsto para a redução da despesa nesta área, e, também algum detalhe sobre os Programas Verticais de Saúde, a política do Medicamento, a politica e número de camas de cuidados continuados a abrir por diminuição de capacidade em camas de agudos, uma vez que a cirurgia em ambulatório já representa mais de metade da produção cirúrgica hospitalar. Também seria possível explicitar as metas quanto ao número de utentes que passam a ter acesso ao Médico de Família e o respectivo investimento em Unidades de Saúde Familiar. O número de Médicos (ativos e reformados) e de enfermeiros a contratar também ganharia com a sua quantificação orçamental, tanto mais que está prevista uma redução de 10.000 funcionários públicos. Seria útil conhecer também quais as dotações para capital dos hospitais por reequipamento tecnológico e o plano para extinção de dívidas acima de 90 dias. Mas inovador, como se esperava de uma equipa especializada em saúde pública, seria uma quantificação quanto aos ganhos de saúde a conquistar em função das políticas a prosseguir e os ganhos de eficiência que algumas medidas podem induzir.

Quanto aos grandes números do orçamento propriamente dito, ou seja quanto à receita e despesa global em saúde, nenhuma surpresa. Antes assim.

Pelo lado da Receita, há três aspectos a destacar:

  • • As Taxas Moderadoras diminuem ligeiramente em valor (50 cêntimos em 5 euros) e alargam as isenções aos dadores de sangue e de células e também aos bombeiros, diminuindo a receita num total de -35 milhões. É um valor que representa menos de 0,3% da receita e que pontua apenas como simbólico, porque não serão os cerca de 5 euros por ano que os não isentos vão poupar que afectará o seu acesso ou rendimento. A grande reforma já tinha sido efectuada pelo anterior governo, quando indexou as taxas moderadoras aos rendimentos das famílias e isentou os grupos especiais de risco. Mais de 7 milhões de portugueses não pagam, desde 2013, taxa moderadora.
  • • A dotação global aumenta 1,5% com a dotação específica para o SNS a apresentar um acréscimo de cerca de 59,1 milhões, abaixo do crescimento previstos para o PIB;
  • • O universo das Entidades Públicas Empresariais (39), como hospitais, centros hospitalares ou unidades locais de saúde, apresenta um decréscimo de 1,8%, ou seja em valores absolutos – 89,7 milhões de euros;

Pelo lado da Despesa existe um conjunto de pressões pouco explicitadas, como por exemplo:

  • • Aumento do volume da massa salarial por efeito da reposição de salários;
  • • Acesso à inovação farmacológica;
  • • Necessidade de aumentos de capital dos hospitais para investimento;
  • • Compromisso de extinguir “arrears” ou seja os débitos em dívida com atrasos superiores a 90 dias;
  • • Incremento da despesa por via das anunciadas contratações de médicos e de enfermeiros, em que as urgências e os recursos das VMER´s são apenas uma componente;
  • • Efeitos nos custos de exploração corrente relacionados com o programa de investimento previsto (criação de USF, investimento em TI, lançamento do projeto do Hospital de Lisboa Oriental; Lançamento dos estudos para a construção do hospital de Évora e do hospital do Seixal; Reabilitação de diversas unidades de cuidados de saúde primários e alguns serviços hospitalares).

Só o conhecimento desses valores detalhados permitira perceber qual o montante final disponível para a actividade operacional dos Hospitais e das Administrações Regionais de Saúde. Assim fica a sensação de que o orçamento de 2016 ficará inferior ao verificado em 2015, quando a linha anterior de crítica fundamental da maioria que hoje suporta o Governo se centrava nos “cortes cegos”, no “subfinanciamento crónico” e na “redução do acesso”, com um orçamento basicamente idêntico, apesar dos números terem demonstrado que nunca tantos doentes foram assistidos nos hospitais portugueses como nos últimos anos.

Contudo, a questão essencial é saber como será acomodado o aumento de encargos que derivará da promessa renovada do Primeiro Ministro de reduzir o horário dos profissionais de saúde de 40 para 35 horas a partir de Julho.

Por cálculos muito grosseiros, algumas unidades hospitalares que têm estudado o assunto prevêem que por cada seis enfermeiros terão de contratar mais um para compensar a consequente redução de horas e manter os turnos. Isto pode significar um impacto da ordem das centenas de enfermeiros nas unidades de maior dimensão. Quanto custará para todo o país? Como será incorporado esse custo? Reduzirá o orçamento anual ou haverá um orçamento suplementar para compensar este novo custo?

Os riscos de um orçamento arriscado

Com um contexto externo complicado, seja a nível económico como político, o risco de execução deste orçamento fica muito maior. Por todas essas razões, há que minimizar o conjunto de riscos existente no orçamento de estado para a saúde. A saber:

1 – Aumento da despesa implícita muito superior à despesa orçamentada

A alta expectativa criada com as promessas do programa de governo e do “draft” do orçamento não se coaduna com uma orçamentação minimalista que se encontra no Relatório do OE. Não se conhece o impacto da reposição salarial, das novas contratações e do efeito 35 horas, nas contas de exploração das unidades. Quanto será necessário?

O alargamento da oferta de Medicina Dentária, cuja opção por uma convenção específica acarretaria um risco menor (custo variável) do que a contratação de dentistas para os centros de saúde, assim como a “Internalização” das convenções de MCDT nos Centros de Saúde, pode prejudicar o acesso e aumentar os custos fixos do SNS, não apenas para este mas para todos os orçamentos futuros, sabendo-se bem como é difícil voltar atrás para reduzir qualquer capacidade instalada no SNS.

2 – Atraso crescente nos pagamentos a fornecedores e agravamento dos passivos

É um velho problema conhecido por todos os economistas da saúde. Se não há orçamento suficiente, fica a dever-se aos fornecedores. Estes, por sua vez, reagem aumentado os preços, para incorporar custos financeiros disfarçados, até que não aguentem mais e nesse momento cortam o abastecimento, vendendo só a pronto. Esta espiral poderá conduzir a um novo e significativo agravamento dos passivos hospitalares. Os hospitais, que representam um pouco mais de 50% da despesa pública em saúde, serão as primeiras entidades onde será mais rápido e mais visível o agravamento dos passivos em consequência da sub-orçamentação da sua atividade. Em final de 2010 o passivo dos hospitais atingiu um valor recorde que quase igualou o montante da sua produção anual e que implicou um programa muito duro de refinanciamento ao longo dos 4 últimos anos, não contemplando o orçamento proposto nenhuma política efectiva de continuidade do reforço dos capitais próprios dos hospitais. Será importante monitorizar este “early indicator”, mensalmente, em particular a partir de Julho! Note-se que só em Janeiro, sem orçamento aprovado, este aumento foi já de 80 milhões.

3 – Não se evidencia a ligação da despesa com as orientações políticas programáticas

Num estudo divulgado pela OCDE [ii] em Junho de 2013 sobre as tendências e determinantes das despesas de saúde, aponta-se que dos fatores determinantes, mais que a demografia ou o rendimento, são as políticas de saúde e a tecnologia que mais “puxam” pela despesa pública. Seria, pois, um exercício importante evidenciar no orçamento o impacto orçamental das políticas que visam cumprir o programa do governo ajudando à transparência das opções e à discussão e avaliação dos resultados. É mais um ponto fraco do orçamento, em contradição com a crescente tendência de exigência de evidência científica como suporte às opções tomadas.

4 – Qualidade das equipas de gestão

A reivindicação das forças políticas, em momentos de oposição, por uma total transparência nas nomeações de dirigentes, raramente se traduz numa prática governativa quando estas alcançam o poder. É por isso uma justa expectativa esperar que este governo cumpra o que as forças políticas que o compõem defendiam antes, ou seja, tornar totalmente transparentes os critérios de recrutamento e os processos de selecção dos dirigentes. A principal razão é porque o nível de exigência de cumprimento de um orçamento como este é muito elevado e os cidadãos e contribuintes não podem suportar mais os custos da incompetência profissional de muitas nomeações baseadas apenas em critérios de filiação politica.

As competências em gestão são cada vez mais requeridas, mesmo nos patamares intermédios das várias unidades de saúde, garantindo uma melhor e mais eficiente gestão dos recursos humanos e financeiros.

Defender o Estado Social e o SNS

A melhor forma de defender o estado social e o SNS é garantir um acesso rápido e eficaz dos cidadãos aos cuidados de saúde, mostrando uma escrupulosa e rigorosa gestão pelos impostos dos contribuintes que suportam o SNS. A moderna administração pública impõe não apenas comportamentos éticos a todos os seus profissionais como uma acrescida exigência pela gestão dos recursos que estão sob a sua orientação.

Com a capacidade que se encontra instalada não é aceitável que uma consulta de especialidade seja tantas vezes tão demorada, uma cirurgia tão adiada e uma ida ao Médico de Família um acto de excepção.

São pontos muito positivos deste orçamento: a manutenção da despesa total consolidada do Programa de Saúde num nível aceitável face à distribuição da despesa pública global; a intensificação do programa de lançamento de novas unidades de cuidados primários (USF) com propostas de maior articulação com os cuidados hospitalares e incentivos na referenciação cruzada; e o lançamento de um Programa Simplex focado na Saúde que permita potenciar a optimização de alguns processos.

O alargamento da base de beneficiários da ADSE, evitando a demagógica descida das contribuições que reduzem a sustentabilidade futura da ADSE, vai também no bom sentido, pois os resultados deste subsistema têm mostrado um melhor acesso aos cuidados de saúde, uma capitação média inferior ao SNS e um nível de satisfação elevado por parte dos seus beneficiários que dispõem até de uma carteira de serviços mais abrangente.

Também é muito positiva a intenção de melhoria da informação disponível ao cidadão através de novos canais de comunicação, em que o Portal do SNS é uma primeira e promissora concretização, assim como a disponibilidade para um maior investimento em Tecnologias de Informação.

A disponibilidade para efetuar algum investimento na reabilitação de diversas unidades de cuidados de saúde primários e hospitalares é também saudada como uma boa notícia.

Contudo, é preciso não perder de vista que não poderá gastar-se mais do que o previsto. Não será, aliás, necessário gastar mais, se se gastar melhor. Tudo o que represente um agravamento dos custos fixos, bem sabemos, que serão mais impostos no futuro. Tudo o que agrave a insegurança criada no sector privado e social, quanto ao futuro da sua articulação com o SNS, será um custo desnecessário e um sinal de preconceito ideológico que os tempos actuais não justificam mais.

A liberdade de escolha, pelo menos no setor público, pode constituir um poderoso catalisador de captura de eficiência, libertando o cidadão e o seu prestador de cuidados para uma escolha cada vez mais informada e livre.

A prossecução de reformas que tragam melhores serviços à população e um maior acesso a cuidados devem seguir sem hesitações, sempre pautadas pela inclusão de todos os parceiros e de todos os sectores que criam valor no país, dinamizando por essa via um verdadeiro mercado de inovação numa economia cada vez mais digital e global que todos os dias pode gerar novas oportunidades aos nossos empresários e aos nossos jovens. Para isso, e por isso, o orçamento é um valioso instrumento de política.

Segundo reza a mitologia grega, Sísifo, o mais astuto de todos os mortais, ao matar a sua mulher porque esta lhe matou os filhos, recebeu como castigo empurrar uma pedra até o lugar mais alto da montanha da terra dos mortos, de onde a mesma rola sempre de volta. A imagem de Sísifo a empurrar essa enorme pedra até ao alto lembra este esforço continuo mas também esse risco de que um mau orçamento nos possa fazer voltar, uma vez mais, à casa de partida. Não é o caso deste orçamento, felizmente. Mas é o perigo que o seu risco de execução comporta se não for muito rigorosa a sua gestão.

[i] “Menosprezada por uns (marxistas) por ser um entrave à revolução e aclamada por outros (liberais) como o principal exemplo de sucesso do capitalismo, a classe média é, como consequência, a principal almofada de amortecimento dos conflitos estruturais…”. Segundo a equipa de investigação do Instituto de Ciências Sociais, liderada por Manuel Villaverde Cabral, a classe média situar-se-ia entre 45% e 58% da população ativa. In “A Classe Média: Ascensão e Declínio”, Elísio Estanque, Ensaios da FFMS, 2012
[ii] De La Maisonneuve, C. and J. Oliveira Martins, “Public spending on health and long-term care: a new set of projections”, No. 06, June 2013, OECD, Paris.