“A diferença entre ficção e realidade? A ficção tem que fazer sentido.” A decifração desta frase dá-nos uma certeza: se os fragmentos de história que compõem este artigo não fazem todoo sentido, então têm de ser realidade.
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Júlia é açoriana e mãe de três filhos, com 15, 13 e 9 anos. Tanto ela como o marido estão empregados. Depois da filha mais nova ser diagnosticada com cancro, Júlia instala-se na Casa da Acreditar, em Lisboa. Durante os mais de três anos que lá viveu em regime de baixa, assistiu aos tratamentos da filha, à amputação de parte da perna da criança, aos constantes vai-e-vem do marido, à degradação das condições emocionais e financeiras de uma família privada de estrutura e rendimento. A filha é dada como curada e Júlia retorna aos Açores e ao emprego de sempre. Um ano depois, contrariando a estatística, a mesma criança é diagnosticada com outro tipo de cancro e regressa a Lisboa. A mãe entra intermitentemente de baixa. Como já tinha uma primeira baixa prolongada, atinge rapidamente o limite de quatro anos imposto pela lei. Perde o emprego para acompanhar a filha. O equilíbrio económico e afectivo da família degrada-se ainda mais, mas já não há nada a fazer. A lei é clara – e Júlia não tem direito a mais baixa.
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Maria teve cancro aos dez e fez tratamentos nos três anos seguintes. Agora, após cinco anos sem qualquer marca física da doença, conquista uma espécie de estatuto: faz parte do grupo dos D.U.R.O.S. (doentes que ultrapassaram a realidade oncológica com sucesso). O fim da rotina das consultas e dos tratamentos fá-la sentir-se sozinha, provoca-lhe sentimentos de abandono, de interrogação quanto ao futuro. As preocupações são partilhadas pelos pais, que sabem das sequelas que permanecem em tantos que passaram pela aventura do cancro infantil. Maria antecipa a segurança das consultas dos D.U.R.O.S. – um espaçoonde sabe que vai ser acompanhada por quem a conhece bem, lhe recomenda as análises ou exames que ela deve fazer e quando, lhe menciona os riscos de saúde possíveis. Dizem-lhe que estas consultas só existem em Lisboa e que terão tendência para acabar. É possível que este seguimento passe a ser feito pelo médico de família, mas Maria está ciente de que estes médicos não sabem o bastante sobre aqueles que sofreram de cancro em criança. Desconfia que talvez eles saibam que não sabem o suficiente, o que a inquieta ainda mais… E talvez intua que a decisão é económica e não técnica, o que não a descansa a ela, nem a tantos outros nas mesmas condições.
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Carlos tem um filho único. Há alguns meses morreu-lhe o sogro. Nos recursos humanos da empresa onde trabalha informaram-no que tinha direito a cinco dias de licença. “Para ajudar a recuperar e tratar do que for preciso”, acrescentaram. Há cerca de três semanas, o filho de Carlos, uma criança com sete anos, morreu de cancro após uma luta demorada. Nos recursos humanos da empresa onde trabalha informaram-no que tinha direito a cinco dias de licença. “Para ajudar a recuperar e tratar do que for preciso”, acrescentaram. Carlos passou os dedos por um cabelo que ficou branco cedo de mais e afirmou, como se não tivesse ouvido bem ou quisesse verbalizar o espanto: “é o meu filho de sete anos. Em cinco dias recupero o quê?”
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Podia ainda contar a história do Hélder, que não pode tratar de um documento oficial porque não quer abandonar a enfermaria onde está o filho para enfrentar as filas de uma repartição. Podia ainda contar a história do António, miúdo de 15 anos que não consegue estudar porque faltam condições, ou da Amália, de 18 anos, sem dinheiro para próteses. Podia contar outras histórias com outros personagens e com outras dificuldades. Talvez a nossa imaginação tenha limites, mas estas realidades não.
Todas estas histórias são verdadeiras. Talvez exista uma Júlia mas não exista um Carlos, e talvez a Maria se chame Sandra ou mesmo Pedro. Talvez não fossem três filhos, ou dezoito anos, ou fosse o Algarve em vez dos Açores. O que sabemos é que tudo isto acontece com uma regularidade que assusta. O que sabemos é que existem outros carlos, outras sandras, outros pais que são confrontados com os dramas que aqui relatei e com outros que não cabem neste artigo: perdas de apoio, inexistência de subsídios ou direitos, desaparecimento de comparticipações.
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Em Setembro – o Setembro Dourado para a comunidade mundial que lida com o cancro infantil – é tempo de contar histórias reais para alertar quem decide, quem não sabe o suficiente, para que também a realidade faça sentido.
João de Bragança
Presidente da Acreditar, Associação de Pais e Amigos de Crianças com Cancro
Membro do Conselho Executivo da Childhood Cancer International