Num parto, nasce um/a bebé e nasce também um pai e uma mãe. Se o nascimento de um/a filho/a é já de si um ponto de viragem na vida de uma pessoa e mesmo do casal (um acontecimento que pontua um antes e um depois), quando esse/a filho/a nasce com uma necessidade específica de saúde ou desenvolvimental, o fosso entre quem eu era antes de ser mãe/pai e quem eu sou agora (que sou mãe/pai) é ainda mais avassalador. Como construir a ponte entre estes dois eus, quando, para além das mudanças implícitas e explicitas da parentalidade, acresce um processo de luto: luto do/a filho/a imaginado e sonhado?

Todas as mudanças, todos os acontecimentos de vida no geral e os adversos em particular e todos os tipos de luto (reais ou simbólicos) podem encerrar em si um desafio à saúde mental. Os fatores de risco são mais que muitos nas mais diversas esferas da vida destes pais e mães: familiar, laboral, social ou escolar. Ter um/a filho/a com deficiência, neurodivergente ou com uma doença crónica e/ou degenerativa tem um impacto psicológico comprovado e com evidentes repercussões na qualidade de vida e perceção de bem-estar dos pais. A dimensão e a intensidade desse impacto serão multifatoriais: depende da gravidade do diagnóstico, do prognóstico, da existência de uma retaguarda de suporte e da qualidade e responsividade da mesma às necessidades destas famílias.

Estudos mostram que a depressão e a ansiedade são mais expressivas nas mães do que nos pais, pois tipicamente são elas que assumem um papel preponderante na prestação de cuidados à criança. A depressão mostra-se correlacionada com baixos níveis de educação e nível socioeconómico que se explica pela maior dificuldade que essas famílias experienciam em aceder a serviços e apoios médicos, terapêuticos e consequentemente uma rede se suporte tendencialmente mais frágil se não mesmo inexistente.

Os níveis de stress são significativamente superiores em pais com filhos portadores de deficiência, doença crónica ou neurodivergentes, do que em pais com filhos cujo desenvolvimento segue um trajeto mais típico, pois um/a filho/a com problema de saúde, com uma síndrome, com uma deficiência exige dos pais cuidados acrescidos, constantes, intensos e muito diferentes dos imaginados e observados à sua volta, por comparação aos pais/mães que conhecem e às suas experiências próximas.

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Muitas vezes o contexto hospitalar transforma-se em casa e os corações e a mente destes pais são inundados com um turbilhão imenso de emoções como medo, ansiedade, zanga, frustração, culpa, preocupação, mas também um amor incondicional que lhes dá a força, uma espécie de superpoder para mover mundos e assim edificar o processo de aceitação inerente à resiliência necessária para a proteção e promoção da cria. Estes pais lutam estoica e diariamente contra o estigma, a discriminação, a inclusão, a responsividade eficiente e positiva dos sistemas em que se movem (saúde, educação, segurança social, trabalho). Quantos pais “abandonam” por opção ou por força da circunstância as suas carreiras para poder responder positivamente às necessidades e cuidados do/da filho/a, passam a viver para cuidar, tornando-se esse o seu propósito de vida.

Para isso, a rede de suporte é crucial: se é verdade que “é preciso uma aldeia inteira para educar uma criança”, nestas famílias desafiadas ainda mais: família, vizinhos, equipas médicas e técnicas multi e transdisiciplinares, professores, assistentes operacionais… e por aí fora. O que sabemos é que quanto maior e mais robusta esta rede de suporte, maior a probabilidade de este suporte funcionar como fator protetor para a saúde mental destes pais, desta família. E o processo de reabilitação da criança não pode descurar o cuidado com a saúde mental dos pais (terapia familiar, grupos de apoio) num modelo sistémico biopsicossocial.

Manifesto aqui a minha profunda admiração por estes pais e estas mães, nomeadamente aqueles/as que tive o privilégio de conhecer e de fazer parte da sua rede, da sua aldeia. A minha experiência de mais de quase duas décadas a trabalhar com famílias multidesafiadas, tanto em contexto clínico (apoio terapêutico e reabilitação) como em contexto escolar da rede pública (apoio terapêutico e consultadoria na comunidade educativa no âmbito das Equipas Multidisciplinares de Apoio à Educação Inclusiva), mostra-me que estes pais são verdadeiros super-heróis sem capa, são das pessoas mais resilientes que conheço e são felizes. Valorizam as pequenas coisas e veem com o coração como ninguém. Celebram as vitórias, por mais pequenas que sejam (por vezes só mensuráveis em papel milimétrico); (re)significam a jornada desafiante como recompensadora. Têm recursos internos e uma força interior incrível qual Hulk ou Homem de Ferro.

Não esqueçamos que também os super-heróis precisam de descansar, de cuidar de si e de serem cuidados com (auto)compaixão, com empatia, com conexão numa cultura e comunidade de verdadeira inclusão.

Claúdia Adão é psicóloga desde 2006, especialista em Psicologia Clínica e da Saúde e em Psicologia da Educação. É diretora-geral da Integral e formadora na Associação Unificar.

Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.

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