Volto à ideia de que as estações se sucedem e a vida se renova. Já estive ali, já disse aquilo, já vi esta árvore, já comi este fruto, já te tinha visto, já escrevi aqui, não passou assim tanto tempo. Mas não sou mais a mesma, nem as coisas à minha volta permaneceram. Tudo, agora, é grande — e eu mais pequena, tenho a percepção contrária à que se tem quando se regressa às ruas do passado, e elas nos parecem mais curtas e mais estreitas. Vistos do futuro, os arredores da vida são mais amplos, quem diminuiu fui eu.

Leva-me a pensar que na vida existe a situação de cada um, contingente, arbitrária, determinada pela economia, pelas condições de partida, pela geometria geográfica, política e geopolítica, afectiva e ambiental para que se nasce. Mas existe também, para cada pessoa, a sua situação poética, que se prende com o que vamos fazendo de nós, à medida que o tempo vai passando. Não cabe nisto aquilo que foi determinado por outros antes de nascermos, as condições que não podemos mudar, os nossos pais, países, condição social, etc. É, antes, a parte ínfima da vida em que nos vamos criando, mesmo sem dar conta de que nos criamos. A parte em que cada um é o seu próprio autor, o nosso exíguo campo de manobra, de batalha, a breve página que nos cabe a nós escrevermos.

Com tanta ânsia de fixarmos o que sentimos e o que vemos, vamos deixando passar despercebida a maneira como a vida é, também, obra nossa. E também nela há muitos momentos em que um narrador obtuso ou sádico faz gato e sapato do herói, ou o passa a ferro, apenas porque lhe dá gozo ver o herói sofrer.

O que fazer diante desse campo livre, que nunca é livre, e nunca é campo, mas o encontro de outras vontades e poderes com os nossos? E como não soçobrar, à medida que se vai entendendo que pouco ou nada se sabe?

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Não é ocioso nem redundante nem falacioso admitir que talvez seja porque o tempo vai passando, e se sabe cada vez menos, que as ruas do passado estão cada vez mais amplas. Se calhar, estão na mesma, e não fomos nós que encolhemos, mas antes tudo o que existe parece aos heróis, envelhecendo, cada vez menos importante.

E, então, pergunto-me, por fim, o que é feito da nossa estrela, da força que se tinha antes, ou para onde vai tudo quanto na vida começou por ser, em cada um, o ânimo e as ganas que o impeliam. Para onde vai a chama que entretanto se extingue. Como fazer, perante o reconhecimento justificado da nossa fraqueza? Este é o maior mistério: que se continue além da extinção gradual da primeira força, que não desistamos perante o desaparecimento da chama e nos resignemos à nossa condição pouco brilhante. Talvez seja por isso que a margem de manobra para a auto-criação seja tão limitada na vida humana. Se fôssemos deixados à solta, éramos sonetos péssimos, literatura de aeroporto, sem leitores que a redimissem.

Quem nos fez teve razão. Fez-nos precisados de escrever a várias mãos. A situação poética é, como a nossa situação de partida, uma situação colectiva.

Vivemos com os outros e criamo-nos com os outros. Não podemos, afinal, fazer mais do que ir passando, cantando e rindo, todos velhos, ultrapassados pela nossa própria vontade, esmagados pelas novidades, satisfeitos por estarmos vivos, ouvindo ladrar os cães ao longe, dizendo uns aos outros que o Outono é tempo de recomeços. Quando, se calhar, caminhamos, com alguma sorte, para a laranjeira do quintal de Raul Brandão que, de velha e gentil, floriu em Dezembro.