Samuel Jonhson afirmou, no século 18, que o patriotismo era o último refúgio dos canalhas. A crítica era a charlatães que dele se apropriavam. Millôr Fernandes, brasileiro do século 20, poeta, dramaturgo, jornalista e, claro, humorista, completou a frase: “no Brasil, é o primeiro”. Tanto a afirmação inicial do escritor britânico quanto o assertivo complemento de Millôr não só se reforçam como ganham novos contornos no Brasil que se aproxima moral e psicologicamente dilacerado da terceira década do século 21. Um “novo” Brasil, segundo os mesmos velhacos de sempre.

Não tenho qualquer obrigação de justificar a ridicularização do bolsonarismo e de todos os que por ele se deixaram seduzir, mas o farei lembrando-lhes imediatamente de uma coisa: a autorridicularização é a constante de uma trupe neurótica que despreza o conhecimento e a intelectualidade. Dizia-se, há uns anos, que a melhor maneira de combater Bolsonaro era deixá-lo falar. Estávamos errados? Não! De fato, os discursos de Bolsonaro são autorridicularizantes. Ao menos para pessoas discernidas e decentes. O nosso erro foi quantificarmos incorretamente os descapacitados e indecentes. Eles, agora, formam uma multidão de pelo menos 57 milhões de pessoas que se autorridicularizam.

Talvez você, leitor, não concorde com esta minha abordagem perante um problema tão grande e tão numericamente vasto. Respeito sua opinião e suas formas de enfrentar o bolsonarismo, e reconheço a necessidade de sermos muito mais propositivos face aos seus absurdos, para que saiamos da desconfortável e pouco construtiva posição de reação. Eu não estou aqui exigindo que reconheçam a minha razão ou a minha infalibilidade, estou aqui para mostrar que o escracho será uma das minhas armas. O Brasil é o país mais infantilizado que conheço. Somos considerados especialistas em gracejo virtual, mestres dos memes , e nos congratulamos por isso, não é mesmo? A maturidade sempre esteve muito longe de ser uma característica do nosso debate político. Não pretendo rebaixar-me ao nível rasteiro dos pulhas piadistas ou dos lacradores sociais que contaminaram os mecanismos de raciocínio da sociedade brasileira, mas pretendo utilizar elementos humorísticos na análise fria dos delírios auriverdes porque talvez só assim possa haver algum sucesso na tentativa de retirar uma grande parcela da população brasileira da lobotomia a que está submetida. Espero que não me leve a mal, embora a esta altura pouco me importe. Espero, igualmente, que não tenha dúvidas quanto aos meus alvos, que são os sabotadores do Brasil.

Mas, afinal, quem são esses “sabotadores”? Bem, o voto não serve para definir por si só uma democracia. Nem mesmo uma frágil e pouco coerente democracia representativa.

Nela, há muitos outros elementos que estarão intrinsecamente associados ao Estado de Direito. Bolsonaro foi eleito eleitoralmente, mas não democraticamente. Para isso era necessário que as regras do jogo não tivessem sido impostas por um dos lados concorrentes — o vencedor, é claro. As regras do jogo não foram imparciais porque o Estado de Direito brasileiro foi sabotado e as eleições ocorreram condicionadas por essa sabotagem. Não apenas a grande imprensa tradicionalmente golpista interferiu criando um ambiente propício. Desta vez, as elites brasileiras interferiram profundamente em dois poderes para condicionar e moldar o terceiro. Dilma foi destituída ilegalmente, sem ter sido condenada por crime de responsabilidade no caso das célebres “pedaladas fiscais”. O objetivo era derrubá-la a qualquer custo e se não fossem essas pedaladas teria sido outra coisa qualquer. Após uma comissão de peritos tê-la inocentado quanto às pedaladas — já após a sacramentação do golpe –, alguns golpistas se agarraram à questão dos decretos suplementares. A maioria, no entanto, ignorou totalmente o resultado da comissão, cuja publicação foi claramente abafada pelo desinteresse social instaurado pelo fanatismo antipetista.

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A esta altura já bastava à direita brasileira justificar o golpe aludindo à baixa popularidade de Dilma, numa demonstração de crescente demagogia populista e de total desrespeito pela legalidade do regime que dizem defender. Já Lula foi preso sem provas em um julgamento claramente parcial e político levado a cabo por um juiz que é agora ministro do candidato à presidência eleito que beneficiou decisivamente da sentença que tirou das eleições exatamente quem o teria derrotado. Que fique bem claro que Lula teria vencido as eleições, mesmo tendo elas ocorrido no contexto de um golpe de Estado, e que este que vos escreve não reivindica a sua inquestionável inocência, tão-somente o seu direito, bem como o de qualquer outro cidadão, a um julgamento pautado pela imparcialidade e tramitado dentro do que a lei prevê. É inimaginável que toda essa tramoia ocorra tão pacificamente em países da União Europeia. A princípio, e salvo casos que são sim preocupantes, como o da Polônia e o da Hungria, por aqui essas aventuras de sabotagem golpista não seriam toleradas, porque as instituições da democracia – representativa e burguesa, é verdade – estão muito mais amadurecidas e consolidadas.

A ideia difundida por alguns de que o que houve no Brasil foi um pontual acidente eleitoral está errada. Houve um processo: a fabricação de um contexto totalmente favorável a qualquer agressiva personificação da loucura que transformou a normal e responsável oposição ao PT em uma psicose geradora de violentos e impactantes surtos de ódio fanático e de esquizofrenia. Esta atmosfera doentia e surreal não reorganizou a sociedade brasileira porque socialmente ela já tinha exatamente a configuração atual, porém disseminou uma espécie de doutrinação irracionalista. Todos os comportamentos preconceituosos, odiosos, rancorosos, destrutivos, místicos e anticientíficos que existem em maior ou menor peso em qualquer sociedade foram organizados praticamente como uma ideologia e no dia 1º de Janeiro subiram a rampa do Palácio do Planalto junto com o seu personificador. A ignorância como consequência da falta de conhecimento passou incrivelmente a ser defendida como expressão de virtude e integridade. Eu vi gente até então desinteressada da política ou mesmo simpatizantes moderados do PT transformarem-se em violentos anti-comunistas. Não há quem não conheça alguém que se tenha transformado dessa forma.

Por mais que o PT tenha cometido graves erros e que alguns dos seus políticos tenham cometido crimes (a sanha em atribuir ao PT o título de organização criminosa é outro arroubo conspiracionista digno do olavismo — o PP, partido a que Bolsonaro esteve filiado durante muitos anos, tem 31 envolvidos na Lava Jato, 5 vezes mais que o partido de Lula), não é normal que aconteçam essas transformações não só de relação com a política, mas de feitio, e que de uma população de moderados surjam multidões de militantes coléricos. E mais do que não ser normal, esse fanatismo não deveria ser encorajado como foi por grupos atolados em interesses político (e partidários) como o Movimento Brasil Livre (MBL), o Vem Prá Rua, entre outros sabotadores da política — e da própria realidade — que orbitam o bolsonarismo. Olavo de Carvalho, um perfeito lunático ignorante e perigosamente mal intencionado que vive numa realidade criada por sua cabeça psicodélica de astrólogo que odeia com um claro toque de perversão a ciência e o pensamento crítico verdadeiramente independente, ganhou status de gênio e popularizou-se, sempre como um guru para séquitos profundamente desorientados e perdidos nas suas próprias limitações e frustrações. Ele é, hoje, o líder (des)intelectual do poder executivo, ​e alguns dos seus delírios claramente ególatras explicitam a bizarrice da sua figura: ele acredita que a PEPSI usa células de fetos abortados como adoçante, que Albert Einstein foi um charlatão ignorante, que a Lei da Inércia de Newton é uma farsa, bem como o sistema heliocêntrico, e que ele, Olavo, é um dos dois únicos indivíduos no mundo que compreenderam verdadeiramente a lógica aristotélica desde que ela foi formulada até hoje. Olavo é  um dos principais — senão o principal — responsável agente teórico da sabotagem da realidade que contaminou decisivamente a política brasileira.

Em um ambiente assim, a política enquanto concertação equilibrada e racional morre. E foi o que aconteceu. A política brasileira foi destruída e teve o seu lugar ocupado por uma disputa suja e imoral não da virtude da análise factual, mas da narrativa conspiracionista. A vitória a qualquer custo consolidou-se como finalidade justificante de meios profundamente desonestos e corruptos, obliterando “pieguices” como verdade, decência e caráter, e todo o espectro da direita que se extremou aliando-se ao que já era extrema-direita empreendeu um projeto digno de distopias para a partir da sua narrativa perpetuar uma verdadeira inversão da realidade. Repito: em um cenário normal a direita continuaria perdendo eleições presidenciais para o PT e a extrema-direita continuaria relegada ao local a que pertence: o esgoto do submundo. A única hipótese que tinham era a criação de um cenário propício à normalização da mentira e foi o que fizeram, utilizando táticas cujo grande precedente havia sido a sabotagem da realidade empreendida pelo trumpismo triunfante. Durante a cerimônia da tomada de posse, grupos de apoiantes de Bolsonaro, vestidos a rigor em auriverde patriótico, entoavam um espontâneo cântico muito elucidativo: “Whatsapp! Whatsapp! Facebook! Facebook!”. Não foi apenas uma provocação inconsequente à comunicação social. Foi, sobretudo, a defesa da seita bolsonarista. Para esses devotos, nenhum meio senão o próprio “messias” que alçaram à presidência lhes poderá dizer a verdade. Paira sobre Bolsonaro uma devoção religiosa que ele procurou fomentar exatamente para sabotar, também, a informação. O trabalho das fake news serviu para a sabotagem da realidade. Já a sabotagem da imprensa servirá para Bolsonaro ser a personificação de uma verdade tão delirante (e falsa) quanto esse ufanismo que celebra as cores nacionais enquanto se prepara para leiloar as riquezas do país.

Portanto, não houve acidente ou uma ascensão meteórica do neofascismo no Brasil. Bolsonaro é uma anomalia premeditada, e eu não o reconheço como presidente legítimo. Pode parecer fácil e até um arroubo de privilégio da minha parte falar em não reconhecer a legitimidade de Bolsonaro, já que não vivo no Brasil. De fato, a minha posição é bastante vantajosa comparada à de tantos milhões de alvos primários do bolsonarismo. Todavia, o fato de eu residir fora do Brasil não deve ser impeditivo moral ou de qualquer outra ordem ao meu posicionamento definido a partir de uma profunda análise de toda a conjuntura. A resistência real será feita pela classe trabalhadora e pelos movimentos sociais verdadeiramente representativos. Eu serei, deste lado do Atlântico, não uma vanguarda efetiva, mas uma voz de solidariedade.

Por anos, especialmente durante os dois primeiros mandatos de Lula, a direita hidrofóbica brasileira andou aflita armazenando rancor. Quem já participava ativamente do debate político na altura sabe bem que o sucesso de Lula foi um duro golpe no ego de uma direita que o subestimava desdenhando das suas características populares. Pela primeira vez na história republicana do país um governo de esquerda com pautas populares se alçava ao executivo. O resultado não poderia ter sido mais humilhante para uma considerável parcela da classe média branca higienista que se considera elite estando muito longe de sê-lo: Lula fez pelo povo brasileiro ​– e com amplo reconhecimento do mesmo, o que é pior — o que nenhum governo das elites tradicionais havia feito. Foi um golpe duro, duríssimo!

Ainda durante o primeiro mandato petista o ódio classista já era visivelmente expelido por quem não aceitava que um homem do povo, do operariado, pudesse manejar com tremendo sucesso o cargo a que tinha sido eleito. Como não havia formas de contrariar pela argumentação o sucesso de Lula, a sabotagem não só ao governo, como a todo o regime democrático brasileiro ficou sendo alimentada em cativeiro à espera de um pretexto suficientemente forte para ser solta na selva política. O pretexto era, como sempre, a corrupção pública, escamoteando a muito mais devastadora corrupção privada​. Mas o que realmente possibilitou a sabotagem foi o enfraquecimento da base aliada do petismo. Sem isso, não teria havido golpe.

Muitos dizem que esse foi o grande diferencial entre o Mensalão de Lula e as pedaladas fiscais de Dilma. É evidente que foi decisivo, determinante. Mas é também evidente que o sexismo entranhado na sociedade brasileira ajudou a catapultar a sabotagem. Os ataques golpistas a Dilma só foram triunfantes por ela ser mulher. O desfecho da gestão da primeira presidenta da história brasileira não poderia ser mais elucidativo: o patriarcado violentamente misógino se evidenciava para ser categoricamente negado pelos chauvinistas de sempre. Aqui ao lado, na Andaluzia, o neofascismo chegou ao parlamento autônomo com elementos discursivos idênticos aos ecoados em todas as demais recentes ascensões do populismo nacionalista, incluindo a agressiva aversão à emancipação das mulheres representada pelos tão ativos e vigorosos movimentos feministas. O mais perigoso e sabotador movimento ultradireitista brasileiro da atualidade, o já referido MBL ​(o movimento autodeclarado “apartidário” que elegeu vários dos seus mais destacados membros a cargos de deputado, estadual ou federal, por partidos de direitas envolvidos no golpismo, e que no ano passado teve dezenas de páginas suas excluídas pelo Facebook em uma espécie de limpeza contra redes de ​fake news)​, publicou em sua página nacional no dia seguinte à tomada de posse um meme utilizando o discurso em libras da recém-empossada primeira-dama brasileira como um marco que, “em um dia lindo e histórico”, representa para esses jovens homens brancos de classe média alto algo muito claro: “a morte do feminismo”.

Onde quer que seja, a extrema-direita ascende a partir de métodos mais ou menos semelhantes; a sabotagem da política e do regime democrático é um dos que mais têm resultado. A ideia de que todos os políticos são iguais e de que as realidade factual pode ser reinterpretada por discursos falaciosos e por mentiras que se repetem até serem convertidas em verdades é um ataque ao âmago da convivência saudável nas sociedades abertas e plurais. Semear células anticognitivas que impedem a sóbria compreensão da realidade é um ataque bestial às estruturas da própria democracia. EUA, Brasil, Itália, Hungria, Polônia e Reino Unido experimentaram esse veneno e não estavam devidamente vacinados. Não se sabe quando recuperarão da enfermidade, e a comunidade internacional precisa atuar face aos seus regimes e em simultâneo evitar que a epidemia do irracionalismo continue sendo difundida pelo neofascismo que ameaça viralizar-se. Estejamos, pois, atentos e protegidos. Também em Portugal. Porque levar um neonazista a programas televisivos apenas porque sim utilizando desonestamente a defesa da “liberdade de expressão” é um tiro no pé que chorudos dividendos de audiência não compensam, tampouco normalizar o neofascismo mordiscando uma posição de destaque na tomada de posse do mesmo. Sim, como cidadão luso-brasileiro, lamento a postura do presidente Marcelo, e lanço-lhe um apelo: apenas dez comitivas internacionais foram à posse de Bolsonaro. Não há – e bem – qualquer entusiasmo internacional em relação a esse novo governo. Seja um elemento não de irmandade ou de reconciliação com o neofascismo, mas de aproximação à resistência democrática que precisará de muita ajuda internacional para que o Brasil não volte a passar por anos de chumbo, que é o que a trupe do fetiche gospel-militarista deseja muito claramente.

Imigrante brasileiro em Portugal, geógrafo graduado e pós graduado pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, fotógrafo responsável pelo projeto de fotoativismo Ativismo Em Foco e membro da Frente de Imigrantes Brasileiros Antifascistas do Porto (FIBRA)