Há cerca de dois meses, o Observador reproduziu o Manifesto por um Verdadeiro Debate Público sobre a Lei da Procriação Medicamente Assistida e Gestação de Substituição, do qual sou um dos subscritores iniciais, que apelava a que o Presidente da República vetasse ambos os diplomas, dadas as dúvidas que suscitam e a ausência de um debate público e aprofundado na sociedade portuguesa sobre o tema.
O Presidente da República promulgou o alargamento da PMA a todas as mulheres, independentemente do seu estado civil, orientação sexual ou diagnóstico de infertilidade, mas vetou a gestação de substituição, mais comummente conhecida por “barrigas de aluguer”.
Em relação à PMA, infelizmente, há agora pouco que se possa fazer, mas a gestação de substituição vai continuar a ser debatida no Parlamento, estando já marcada nova votação da lei para o próximo dia 20 de julho.
Este é um tema complexo e delicado, que vai muito além de questões partidárias e da tradicional divisão esquerda/direita, sendo portanto imperioso que seja discutido com ponderação. Assim, antes de se legislar sobre a gestação de substituição, é importante que se discuta verdadeiramente este assunto, se esclareça os portugueses sobre o que está em causa e se ouça a sua opinião.
Nesse sentido, o mesmo grupo que promoveu o Manifesto lançou uma Petição, no dia 10 de junho, solicitando à Assembleia da República que delibere sobre a convocação de um referendo sobre a gestação de substituição e promova um debate público sobre o tema. A Petição, com mais de 4400 assinaturas, foi enviada para o Parlamento no dia 18 de julho e esperamos assim que a votação seja adiada e a nova versão do diploma apenas discutida depois de considerados os argumentos constantes da petição, por respeito à Democracia e aos cidadãos peticionários.
Para fundamentar o veto, o Senhor Presidente da República baseou-se nos pareceres de 2012 e 2016 do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV), afirmando que o projeto de lei não comporta todas as recomendações do mesmo.
Em 2012, o CNECV aceitaria excecionalmente a gestação de substituição, se uma série de 13 condições fosse cumulativamente satisfeita. Porém, mesmo respeitando todas as orientações deste órgão, a gestação de substituição continuaria a levantar dúvidas, suscitadas pelo próprio CNECV: “será aceitável que a lei imponha o cumprimento de um contrato que representa o corte com o vínculo biológico e afetivo construído ao longo do desenvolvimento intrauterino da criança e cuja manutenção e aperfeiçoamento a ciência já demonstrou ser benéfica para o recém-nascido, no seu processo de crescimento e de afirmação bio-psico-social” (87/CNECV/2016, pp. 15-16)?
De facto, a gestação de substituição trata a mulher gestante como uma mera incubadora e ignora os laços afetivos e psicológicos estabelecidos entre o feto e a mulher grávida, desvalorizando o período de gravidez e violando a dignidade da mulher. Isto é incontornável, quer estejamos a falar de um negócio “altruísta” ou “comercial”.
A este respeito, em dezembro de 2015, o Parlamento Europeu foi claro: “condena a prática de gestação para outrem, que compromete a dignidade humana da mulher, pois o seu corpo e as suas funções reprodutoras são utilizados como mercadoria; considera que a prática de gestação para outrem, que envolve a exploração reprodutiva e a utilização do corpo humano para ganhos financeiros ou outros, nomeadamente de mulheres vulneráveis em países em desenvolvimento, deve ser proibida e tratada com urgência em instrumentos de direitos humanos” (par. 115). Também associações feministas se têm mostrado contra a gestação de substituição, como é o caso da Plataforma Portuguesa para os Direitos das Mulheres e vários movimentos internacionais.
Por outro lado, algumas recomendações do CNECV são questionáveis e até algo incoerentes. Por exemplo, sugere o CNECV que “cabe ao casal beneficiário, em conjunto com a gestante de substituição, decidir a forma de amamentação (devendo, em caso de conflito, prevalecer a opção do casal beneficiário)” (63/CNECV/2012, p. 10). Assim, o casal beneficiário poderia obrigar a gestante a amamentar a criança, contra a sua vontade, limitando a sua liberdade. Noutro ponto, porém, o CNECV afirma que o contrato “não pode impor restrições de comportamentos à gestante de substituição (tais como condicionamentos na alimentação, vestuário, profissão, vida sexual)” (63/CNECV/2012, p. 10).
O CNECV propõe ainda que “o consentimento [possa] ser revogado pela gestante de substituição em qualquer momento até ao início do parto. Neste caso a criança deve ser considerada para todos os efeitos sociais e jurídicos como filha de quem a deu à luz” (63/CNECV/2012, p. 9). Neste ponto, parece que se salvaguarda a autonomia e liberdade da mulher grávida, defendendo os seus interesses, mas potencia-se também uma situação de incerteza sobre quem vai ficar com o bebé e de instabilidade emocional na gestante e no casal beneficiário, que não favorece ninguém. Por sua vez, o projeto de lei aprovado estabelece que a criança é tida como filha do casal beneficiário, mas é omisso nos termos de revogação do contrato, o que fragiliza a posição da gestante. Como resolver então estes conflitos de interesses?
Assume ainda especial gravidade o facto de, nestes pontos, não ser feita qualquer consideração sobre o que poderá ser melhor para a criança.
Com os exemplos descritos torna-se claro que a gestação de substituição levanta questões sobre o que é ser mãe e o que é ser filho, põe em causa a dignidade da mulher e o desenvolvimento harmonioso da criança e que é impossível de legislar sem que tal implique a violação de direitos fundamentais de algum dos intervenientes, geralmente a parte mais frágil, tendo pois sérias consequências morais e sociais.
Repare-se, ainda, que se prevê na Lei Portuguesa, no âmbito do direito do ambiente, o chamado Princípio da Precaução, que estabelece que não devem ser adotadas políticas ou ações que possam causar danos ao ambiente, ainda que não haja consenso científico sobre a medida em causa. Não fará sentido aplicar um princípio análogo, com ainda maior rigor e exigência, quando estamos a lidar com vidas humanas, evitando-se a adoção de políticas com consequências humanas, morais e sociais incertas?
Numa outra perspetiva, é discutível a legitimidade, senão política, pelo menos moral, do Parlamento para legalizar a gestação de substituição, já que apenas o Bloco de Esquerda previa este tema no programa eleitoral, não estando os demais partidos em condições de conhecer o pensamento dos portugueses, em especial dos seus eleitores, sobre esta matéria. De outra forma, estar-se-á a quebrar o elo de confiança entre eleitores e deputados, bem como a subverter o princípio basilar da Soberania Popular em que se funda a República Portuguesa e o regime democrático.
Os fundamentos e consequências da Gestação de Substituição exigem um debate alargado e consciente na sociedade, não uma legislação apressada e leviana.
A petição está disponível na íntegra aqui. Mais informação pode ser encontrada na nossa página no Facebook.