Tinha oito anos, quando se deu o 25 de Abril de 1974.

Na altura, estávamos na Guarda. Bem cedo, o Dr. Lacerda bateu à porta. O pai, era delegado do procurador geral da República. O Dr. Lacerda, era juiz. Vivíamos nas casas de função, lado a lado, o delegado, o juiz e o juiz corregedor.

O pai, com essa batida urgente das sete da manhã, ficou preocupado. Afinal de contas, o edifício da PIDE estava no cimo da rua. E ele tinha o hábito de comprar livros proibidos na livraria do Sr. Casimiro, que lhe contara, quando ele saía, um agente da polícia política entrava, a perguntar pelos títulos comprados.

Lembro-me de folhear, no ano de 1973, na sala rodeada de livros lá de casa, os Contos do Gin-Tonic do Mário Henrique Leiria, com o seu design impressivo, e o Dinossauro Excelentíssimo, de José Cardoso Pires, com as magníficas ilustrações de João Abel Manta.

“Aconteceu uma revolução”, disse o pai, e foi a correr para o rádio.

Eu fiquei a matutar. O que seria uma revolução?

No dia seguinte, não tivemos aulas, o que foi ótimo, pois embarcámos num fim de semana grande!

Na segunda-feira, como em tantos outros momentos, calcorreei a rua, até à escola primária do Bonfim. No começo da aula, o professor Lourenço, pôs uma cadeira sobre o estrado, subiu a cadeira, e retirou o retrato que encimava o quadro negro. Eram uma fotografia oficial do então presidente da República, Américo Thomaz. Sei, agora. Na altura, não fazia a mínima ideia de quem era o homem, só uma peça decorativa na parede.

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O professor Lourenço, já nos seus sessenta anos, desceu do estrado, segurando a pesada moldura com as duas mãos. Encostou-a à parede. Depois, ajoelhou-se, levantou o estrado, e empurrou para esse espaço vazio dentro dele a fotografia do presidente, virada para baixo. Erguendo-se, e limpando o pó das mãos com um lenço, olhou para nós e disse: “Agora, vocês não compreendem o que acabei de fazer. Mais tarde, vão-se lembrar, vão perceber.” E assim foi.

Os meses de maio e de junho foram fantásticos! Passámos o tempo a desenhar, a escrever redações, a fazer passeios, descendo do Bonfim até Alfarazes, ou indo, sempre a pé, até à capela do Mileu.

Tenho, na memória, searas altas e os pés na terra quente. Éramos felizes, nesses passeios, mas não sabíamos.

Olho da varanda da minha idade, agora, os dias da infância, e para o tempo (tão veloz) que, entretanto, me cobriu de cabelos brancos.

Portugal, 50 anos depois, nesta terceira República, está muito melhor que na segunda.

Somos, constitucionalmente, uma democracia, apesar de hoje, em Portugal como em outros países, dependendo do nível de aproximação às tecituras do Poder e da realidade, se cruze a democracia com dinâmicas oligárquicas, aristocráticas ou autoritárias, que operam a nível local, nacional e internacional.

As crianças e jovens de hoje, nados e criados na União Europeia, sem termo de comparação com o anterior regime, olham para o Futuro, não para o Passado. Dão por adquiridas tantas coisas que o não eram e que se devem a homens e mulheres de coragem, pessoas que tiveram, a partir de diferentes quadrantes, a capacidade de evitar o derramamento de sangue, a guerra civil, talvez, entre 1974 e 1976. Pessoas que deram espaço para a criação de uma sociedade mais justa. Não têm consciência do trauma da guerra colonial, que despoletou a democracia, e como esta guerra afetou centenas de milhares de famílias. Não sabem dos antigos combatentes que não foram cuidados como mereciam.

Devemos homenagem a quem tanto nos deu. E a sociedade portuguesa, no seu todo, (crianças, jovens, adultos) devia ter esta consciência.

Lembro a canção que serviu de senha, naquela madrugada esperada (como nas palavras de Sophia de Mello Breyner). Grândola Vila Morena, de Zeca Afonso. E o verso “O Povo é quem mais ordena!”. Há quem não goste do poema e da canção de que este verso faz parte. Todavia, esta frase – “O Povo é quem mais ordena”, é muito similar à que abre a Constituição Americana de 1787 – que se mantém até hoje – e que institui a primeira revolução democrática, no Ocidente. O texto desta Constituição começa com as palavras “We, the People” – “Nós, o Povo”. A afirmação da soberania popular (claro, o ponto de partida de quem escreveu as duas frases era diferente, tema para outro artigo).

Hoje, como em 1974, celebramos a soberania popular – Nós, o Povo.

Independentemente do ponto do espectro de orientação ideológica onde nos colocamos, em democracia, o conceito de soberania popular é o seu fundamento e o seu garante.

A soberania popular não se reduz ao direito de voto. Implica a educação e participação cívica, a decisão esclarecida, a autonomia individual.

De várias formas, estes parâmetros estão ameaçados.

Falta um sentido cívico de comunidade nacional; faltam decisões cidadãs esclarecidas; falta autonomia individual. As ameaças vêm de dentro e de fora (se bem que, face à diluição de todos os tipos de fronteiras, seja difícil distinguir uma coisa da outra).

Ameaças de dentro, pois sem mudança de modelos educativos (modos de ensinar) e conteúdos programáticos, os sistemas institucionais de socialização, face aos desafios da sociedade digital, serão cada vez mais, obsoletos, deixando um campo vasto de oportunidades a outros, para doutrinar, predar, apropriar, crianças e jovens, acantonados em jogos, apps e redes. Ameaças de fora, predadores políticos, económicos, religiosos, culturais, e um conjunto alargado de toxicodependências, espreitam a oportunidade, promovem-na sem escrúpulos, numa Europa com poucas defesas para responder a este género de ataques.

Vivemos momentos nacionais e internacionais conturbados. Vivemos uma situação climática que exige transformações de modos de vida. Num contexto de grande fragmentação entre partes da comunidade, precisamos de ser capazes de nos unir em torno de objetivos comuns, para cuidar de valores tão dificilmente conquistados – a liberdade, a democracia. Como tudo na história humana, são coisas frágeis e perecíveis. Esta união só é possível a partir de uma atitude que está a faltar: escutar o outro; compreender a sua posição, anseios e medos; dialogar. A convergência para questões essenciais, só é possível a partir desta predisposição.

Precisamos de encontrar melhores e mais oportunidades para os desfavorecidos e de reduzir as desigualdades — não tornando todos pobres, mas criando condições para haver maior prosperidade e melhor redistribuição. Como social democrata, acredito no justo equilíbrio entre mercado e Estado Social. Sem criação de riqueza, não é possível redistribuir. Sem incentivos à iniciativa privada, não é possível criar riqueza (mas há sempre quem torne esta fórmula, aparentemente simples, num exercício de dados viciados).

Ao colocar estas palavras no papel, sinto-me a regressar aos campos de trigo de Maio de 74, o professor Lourenço a dizer, perplexo: “Escreves como um adulto”.

Mas eu não estava virado para as perplexidades do professor Lourenço.

Há papoilas, dentes de leão, bocas de lobo, no meio das searas. O trigo está dourado e cheira quase a pão.