Na obra A Íliada é descrita uma das maiores façanhas dos Gregos: a Guerra de Tróia. Este foi um local sempre tido como mítico. Contudo, nas escavações na década de 1870, o arqueólogo alemão H. Schliemann (1822-1890) descobriu a famosa Tróia homérica, dando corpo arqueológico àquilo que muitos julgavam ser fantasia, ou apenas mito.
Sim. Feliz, ou infelizmente, há mitos que surgem por acontecimentos históricos.
O incidente
Na passada Sexta-feira, na Sic Notícias, o comentador Francisco Louçã atacou-me, mostrando um vídeo que modificava, propositadamente, a estrutura de um discurso de 2019 (É essa a actualidade semanal de comentários?). Esse discurso era relativo a um voto do PSD de equiparação do nazismo ao comunismo, onde eu falei sobre o Holodomor. O horror que esse episódio histórico significou para o povo ucraniano foi um crime provocado pelo comunismo. Em momento algum diminuí o sofrimento de outros povos, de outras vítimas, de outras realidades. Qualquer extremismo, para mim, deverá ser combatido: seja ele de Direita ou de Esquerda. Daí achar essa equiparação, reconhecida pelo Parlamento Europeu, mais do que legítima.
Quanto ao comentário jocoso e distorcido de Francisco Louçã, vejo dois níveis de leitura.
Interpretação geral
A primeira é o facto de fazer pouco de um acontecimento histórico que é reconhecido pelo país onde é Conselheiro de Estado, Portugal, no documento Nº 233/XIII, 2 de Março de 2017, votado no Parlamento, que reconhece o Holodomor de 1932-1933 como genocídio do povo ucraniano.
Portanto, o Senhor Conselheiro de Estado ridicularizou todo um povo e a sua História, bem como negou uma resolução do parlamento do país onde tem responsabilidades políticas consideráveis.
Ora, se o Senhor Presidente da República tem um Conselheiro de Estado que ri de um genocídio que Portugal reconheceu, este Conselheiro está a fazer o quê? A procurar um incidente diplomático? Ou apenas a demonstrar a sua ignorância histórica publicamente?
Dizem que a ignorância é atrevida. E a do comentador Francisco Louçã é indiscutível. Distorcendo a minha explicação sobre o mito de que os “comunistas comiam criancinhas”, disse que eu acreditava piamente nisso. Felizmente, para esse comentador, nenhum familiar seu encontrou cadáveres nas ruas e viu pessoas a devorarem-nos, porque estavam loucas de fome; felizmente, para o senhor comentador, não precisou acolher em casa uma criança que fugiu dos pais porque percebeu que, cada vez que desaparecia um irmão, havia carne na mesa. Ora, esta passagem monstruosa que a minha avó materna relatou e que eu contei no meu discurso, foi propositadamente cortada. Branqueamento à soviética?
A própria Cruz Vermelha, à época, tirou fotografias desses horrores; jornalistas revelaram alguns destes acontecimentos. Quando o Ocidente ouviu falar nessas atrocidades, começou a surgir esse mito, de que “os comunistas comiam crianças”. Porque houve canibalismo. E, sendo a Ucrânia considerada uma parte do mundo comunista, o simples silogismo foi feito. Julgo que o senhor comentador ainda saberá o que é um silogismo. Lamentavelmente, já não poderei dizer o mesmo relativamente à sua compreensão de Português, pois não vê a diferença entre dizer-se “foi daí que surgiu o mito…” de “os comunistas comiam criancinhas”.
Monstruosamente, houve canibalismo. E este não olhava nem perguntava qual era a cor política da vítima (nem a sua nacionalidade: não foram só ucranianos que morreram de fome e praticaram canibalismo, mas foram em maioria). Uma coisa é certa: quem provocou essa fome de forma intencional, orquestrada, até militarmente, foi Estaline e o seu Comité do Partido Comunista, como provam vários documentos.
Interpretação pessoal
O meu segundo nível de leitura é sobre o ataque pessoal. Não vejo explicação para, com tantos assuntos da actualidade a abordar, o senhor comentador vá buscar um vídeo de há dois anos, numa tentativa pobre de gozar com a forma como eu falo, com o que eu digo e com o que eu defendo.
Concluindo, uma Esquerda que se diz defensora da mulher, do estrangeiro, da vítima, protagonizada por este senhor comentador, afinal escarneceu de uma mulher portuguesa, neta de ucranianos, que falou de um tema historicamente comprovado e de forma desonesta editou propositadamente um vídeo para encaixar na sua premissa pessoal, numa tentativa de descredibilização.
Em todo este episódio, o que me incomoda é a vil tentativa, não de branquear a História, mas de a “avermelhar”. Os crimes do comunismo continuam, e não vos vejo a ofenderem-se – Venezuela, Coreia do Norte, China, só para citar os exemplos mais gritantes.
Contudo, isto lembra-me um ditado alemão: “Was juckt es die Eiche, wenn sich die Sau daran reibt?”, numa tradução livre, “Porque se há-de importar o carvalho quando o javali se coça no seu tronco?”.
Tenho pena do senhor Conselheiro de Estado. Pena porque isto não foi só um sinal de misogenia, xenofobia e desonestidade intelectual e política: foi também um sinal de ignorância.
Leitura recomendada ao senhor Conselheiro de Estado:
Applebaum, Anne (2017). Red Famine: Stalin’s War on Ukraine. Knopf Doubleday Publishing Group; Conquest, Robert (2002) [1986]. The Harvest Of Sorrow: Soviet Collectivisation and the Terror-Famine. London: Pimlico; Dolot, Miron (1985). Execution by Hunger: The Hidden Holocaust. New York, NY: W. W. Norton & Company (ou um, em português, talvez lhe seja mais fácil), Franco, José Eduardo; CIESZYNSKA, Beata (2013). Holodomor – a desconhecida tragédia ucraniana (1932-1933), Grácio Editor.