Quando somos jovens, numa cidade onde chamar hora de ponta a qualquer maior fluxo de trânsito é uma clara hipérbole, a Romaria é o nosso festival de verão. Nele não há grandes artistas convidados. É um fado que leva as multidões ao rubro, enquanto o cantam em uníssono. Não há cabeças de cartaz, nem novidades de edição em edição. E isso acontece porque a Romaria é a cidade. Uma cidade subversiva, que soube transformar um lugar antigamente periférico e destinado ao enforcamento dos condenados – é precisamente nesse lugar que, hoje, se situa o Santuário da Senhora da Agonia – no centro de uma festa sem vencedores, nem vencidos, sem donos, nem escravos.

A Romaria da Senhora da Agonia não é religiosa, nem é profana – se estas categorias ainda são sequer operativas. É outra coisa. Tem um só coração. Vive numa tessitura onde essas divisões não fazem qualquer sentido, porque só quando somos plenamente humanos é que podemos ser plenamente divinos.

A Romaria da Senhora da Agonia ensina, desde cedo, que a nossa herança é mal servida quando exposta a guerras culturais artificiais, a exercícios de reparação ou a cancelamentos. Todos sabemos que o passado-presente que sai à rua não é um tempo idealizado, que, nele, nem sempre direitos e garantias foram respeitados segundo os critérios que, hoje, tão legitimamente exigimos, mas depois da Romaria ficamos sempre com uma certeza: o que somos não é algo tão monocromático como tantas vezes nos vendem. Tem muita mais cor. É muito mais diverso. É muito mais fora do catálogo, do que dentro das convenções.

A Romaria da Senhora da Agonia é uma espécie de decomposição ecológica do mundo. O som dos relâmpagos desce ao chão com o estremecer dos bombos. Os monstros e os pesadelos que habitam os sonhos, passeiam-se alegremente pelas ruas, como gigantones e cabeçudos. O sal, que se espalha pelas ruas da ribeira compondo um tapete para a “Senhora passar”, parece extraído e raptado, por uns momentos, do mar. O céu noturno vê a sua escuridão perturbada pela luz do fogo-de-artifício. E se é verdade que os vianenses estão sempre a dizer que “em Viana não há nada”, Viana transforma-se, por estes dias, na cidade que nunca dorme.

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Mas Viana, tantas vezes chamada a cidade do ouro, é-o, agora, de outra maneira. Iúri Leitão, o vencedor da única medalha de ouro portuguesa nos Jogos Olímpicos de Paris, é vianense. E isso tem dois significados especiais.

Em primeiro lugar, porque Viana, como certamente acontece com a maioria das localidades portuguesas, só entra no radar noticioso em três ocasiões: quando algum político a vem visitar, quando acontece alguma tragédia, ou em roteiros de verão. Ou seja, é raro que essa atenção se deva ao nosso mérito. É raro sentirmos – nós e tantos outros portugais – que valemos a pena e que damos algo ao país, que mereça reconhecimento. E ter um vianense a ganhar um ouro olímpico faz-nos sentir tão grandes e indestrutíveis como o monte de Santa Luzia, ainda que essa não seja a montanha mais alta de Portugal.

Em segundo lugar, porque num tempo em que muitos gritam que temos que espezinhar os outros para vencer, que temos que saber levar a vida e aproveitar, dos outros, o lado mais fraco, ao mesmo tempo que outros anunciam que ganhar não importa, que, no desporto, como na vida, basta participar, o exemplo de desportivismo do Iúri mostrou como é possível conciliar as duas coisas: ganhar de mãos dadas com a humanidade. E, enquanto isso acontecer, a bondade não é uma ideia e o Cristianismo não é uma teoria.