O excesso de mortalidade tem sido actualmente um tema em discussão, em parte devido às ondas de calor, mas não só. Pelo que se tornou também um tema de culpabilização do sistema, em particular da eventual degradação do SNS, mas também de arremesso político e de argumentação contra as medidas de combate à pandemia Covid-19.

Para um matemático e analista de dados (especialmente de séries temporais), antes se de apontar qualquer causa ou encontrar qualquer culpa, deve-se sempre olhar primeiro para os dados, estudar a sua natureza, analisá-los ao pormenor com todas as ferramentas possíveis, para depois se poder apontar hipóteses de eventuais causas que, simultaneamente, expliquem os resultados e corroborem com os dados. E mesmo assim poderão permanecer dúvidas ou não se conseguir demonstrar sequer a veracidade das hipóteses de forma evidente e inequívoca.

De facto, olhando para a evolução da mortalidade em Portugal ao longo do ano de 2022 encontramos um padrão que difere daquilo que se pode chamar de normalidade, quer ao nível do número de mortes diárias, quer da sua variação mensal ou mesmo sazonal. Em termos normais e para o período de referência de 2015 a 2019 (podem ser usados outras referências, por exemplo os últimos 5 anos tal como é usado pelas DGS), encontramos médias de 400 morte diárias em Janeiro, 300 em Abril e 260 em Julho (Figura 1). Pois, em 2022 ficámos com números bem diferentes da média, com 380 em Janeiro (abaixo da média) e com 340 em Abril e Julho (muito acima da média). Calculando o acumulado do excesso de mortes diárias em relação ao período de referência de 2015-2019, temos 8014 mortes a mais em 2022 até ao dia 8 de Agosto (com dados à data de dia 9 de Agosto), sendo que 5719 dessas mortes correspondem a mortes Covid-19 (uma causa que não existia para o período de referência de pré-pandemia).

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Muito se tem conjeturado sobre as possíveis causas e razões deste excesso de mortalidade. Cada um, baseado numa leitura simples dos dados, encontra as razões que mais lhe parecem plausíveis baseado nas suas convicções e seus objectivos. Na maioria dos casos, baseado numa perceção empírica, ou numa leitura enviesada da realidade, ora olhando apenas para uma parte dos dados, ora escamoteando dados e informação, cujo acesso na maior parte das vezes é limitado, ou numa leitura simples e sem qualquer análise matemático-estatística suficientemente robusta e fiável.

Do ponto de vista matemático, existem (entre outras) duas formas que se podem usar para analisar objectivamente o excesso de mortalidade. Uma é recorrendo a indicadores normalizados que nos dão o desvio relativamente a um padrão normal (ex: média de um período de referência). A outra é fazendo uma análise da série temporal, ao longo de um período longo de dados, através de ferramentas como a regressão e a correlação numérica, desagregando os dados por anos, meses e semanas e, neste caso, também por faixas etárias, e ainda, eventualmente por causas de morte.

Pegando em dois índices de mortalidade: 1- Excesso Normalizado de Mortalidade; e 2- Índice de Mortalidade Diária; (Figura 2)podemos verificar que relativamente ao período de referência pré-pandemia de 2015-2019 existiram apenas 2 curtos períodos de excesso de mortalidade em 2022.

O primeiro índice pega no excesso de mortalidade diária, dado pela diferença de óbitos de um dado dia do ano com o número médio de óbitos desse mesmo dia do ano calculado para o período de referência, e divide-o por o desvio padrão (incerteza) dessa mesma diferença. Sempre que este índice de excesso normalizado for superior a 2.0 (arredondamento de 1.96) estamos na presença de uma anomalia positiva (excesso) com 97.5% de probabilidade de estar fora do intervalo de uma distribuição normal.

O segundo índice pega no excesso de mortalidade e divide-o pelo produto do factor 1.96 (97.5% de confiança) com a raiz quadrada da média de mortalidade diária do período de referência. Este índice é semelhante ao Índice ICARO usado pela DGS para estimar o excesso de mortalidade associado a ondas de calor ou vagas de frio (Índice = Valor_Estimado/ (1.96*Raiz_Quadrada(Valor_Esperado)). Neste caso, todos os valores que estiverem acima de um limiar, por exemplo 2.3, correspondem a dias com excesso de mortalidade.

A análise gráfica do comportamento dos dois índices, mostra, primeiro, uma concordância entre eles, segundo, que existiram apenas 2 pequenos períodos, de 11 e 13 dias, respectivamente, nos meses de Junho e Julho em 2022, correspondentes à ocorrência de ondas de calor.

É muito importante definir-se um limiar a partir do qual se considera existir ou não excesso de mortalidade, caso contrário qualquer anomalia positiva relativamente à média será erradamente considerada excesso de mortalidade. A razão prende-se com a variabilidade do número de mortes que pode acontecer num mesmo dia de vários anos. Por exemplo, o número de óbitos que ocorreram em 15 de Julho dos anos entre 2015-2019 variou entre 236 e 268 óbitos, com uma média de 257 óbitos (± 14 óbitos). Já em 2022 nesse dia de 15 de Julho ocorreram 454 óbitos (em 2020 ocorreram 317 e em 2021 ocorreram 284). Assim é errado afirmar que todos os óbitos acima da média entre 1 e 17 de Julho de 2022, mil e tal óbitos, correspondam a óbitos associados à onda de calor. Bem como, é errado afirmar que antes das ondas de calor estava já a ocorrer um excesso de mortalidade que poderia estar associado a problemas no SNS ou às consequências indirectas do combate à pandemia.

Feitas as contas, e recorrendo a estes dois índices, conclui-se que para o período de Junho houve um excesso acumulado de mortalidade estimado em 390 óbitos associados à primeira onda de calor. E para o período de Julho houve um excesso estimado de 620 óbitos associados à segunda onda de calor. Todos os restantes óbitos que estiveram acima da média, tomando como valor esperado, devem-se à Covid-19 (uma causa que não existia antes de 2020) e uma outra causa, que explicaremos mais adiante, o envelhecimento da população. Ou seja, devido ao aumento da esperança média de vida temos hoje mais pessoas acima dos 85 anos do que tínhamos, por exemplo, há 5 ou 10 anos (envelhecimento do topo da pirâmide demográfica). O que por si aumenta a mortalidade natural devido ao consequente aumento de morbilidade.

Uma análise da mortalidade média semanal ao longo de 2022 e até início de agosto (Figura 3) mostra exactamente esta evolução do excesso de mortalidade associada às ondas de calor, à causa adicional de mortalidade, a Covid-19, e eventualmente ao envelhecimento da população. Esta última causa é difícil de interpretar pois é necessária uma análise adicional para se poder concluir isso mesmo, já que com uma leitura simples destes gráficos isso não é evidente. Temos assim nas primeiras semanas de 2022 um défice de mortalidade, à partida devido ao confinamento sanitário imposto à população, que contribuiu para uma maior proteção e redução da exposição dos mais idosos à contração de doenças respiratórias infecto-contagiosas. A partir de meados de Março, começa o período de mortalidade acima da média de 2015-2019 que se prolonga até à última semana, no qual se destacam exactamente os períodos das ondas de calor de Junho e Julho.

Comparando esse excesso de mortalidade com a mortalidade Covid-19, verifica-se que esta explica em parte esse excesso, mas não o explica na sua totalidade. Contudo aqui já podemos desmontar algumas hipóteses sobre o excesso de mortalidade que têm sido apontadas. Se tomarmos a média diária de mortes Covid-19, de 26 mortes/dia, e a deduzirmos do excesso calculado de mortalidade média diária, fica-nos uma anomalia positiva de excesso de mortalidade que está dentro da variabilidade de 1.96 vezes o desvio padrão (correspondente a 97.5% de confiança). Pelo que o excesso de mortalidade verificado por todas as outras causas está dentro da normalidade, com a excepção dos referidos períodos de ondas de calor.

Vamos então tentar encontrar as causas principais do aumento da mortalidade (excesso de mortalidade acima do esperado). Comecemos por analisar a série de mortalidade acumulada desde 2009 e apenas até ao dia 8 de Agosto, disponibilizada pelo sistema de vigilância de mortalidade da DGS, o SICO-eVM (Figura 4). Aqui verificamos várias coisas, que o número de óbitos ocorridos de 2020, 2021 e 2022 até à primeira semana de Agosto esteve sempre a cima da média, que o número de óbitos não-Covid ocorridos em 2022, embora acima da média 2015-2019, está dentro da mesma ordem de grandeza dos últimos anos antes da pandemia, e que a tendência ao longo dos anos nos mostra um aumento contínuo do número de mortes para estas primeiras 31 semanas do ano.

Com os mesmos dados, e agora removendo o número de óbitos atribuídos à Covid-19, obtemos uma série que podemos chamar de mortes não-Covid, entre 2009 e 2022 para o mesmo período de cada ano, de 1 de Janeiro a 8 de Agosto. Sobre esta série aplicamos uma regressão linear ao número acumulado de óbitos de cada ano até 8 de Agosto e os respectivos limites do intervalo de confiança a 95%. Daqui tiramos logo duas conclusões: primeiro, que a mortalidade tem vindo naturalmente a aumentar desde 2009 com uma taxa que corresponde para este período a 619 óbitos/ano. Ou seja, em cada dia e a cada ano que passa morrem 2.8 pessoas a mais (619 óbitos/220 dias) relativamente ao ano anterior. Segundo, que a mortalidade de 2020 a 2022 está dentro do intervalo de 95% confiança, ou seja, está em linha com a evolução natural de aumento de mortalidade que se vinha verificando antes da pandemia Covid-19. Mais precisamente, 2020 está mesmo no limite superior da variabilidade normal, 2021, apesar da elevada letalidade Covid-19 que ocorreu em Janeiro desse ano, fica no limite inferior da variabilidade normal, e 2022 está perfeitamente em linha com ao aumento de mortalidade da última década.

Com esta análise, desacoplando a mortalidade Covid-19 da mortalidade total, ainda se pode estimar o número de mortes indirectas que resultaram por cada morte de Covid-19, devido à aplicação das medidas sanitárias de confinamento. Em 2022 esse efeito indirecto foi de 67 mortes a mais por cada 100 mortes de Covid-19, em 2021 verificou-se um efeito negativo de -16 mortes por cada 100 mortes Covid, e em 2022 esse valor é de apenas 2/100 mortes Covid. Perfazendo uma média de apenas 18 mortes indirectas por cada 100 mortes Covid ao longo dos quase 2 anos e meio de pandemia. O que demonstra por si que o efeito indirecto do combate à pandemia na mortalidade global é muito reduzido, quase 4500 óbitos a mais em cerca de 24707 contabilizados até ao momento.

Vejamos agora a razão do aumento natural da mortalidade que se tem vindo a verificar pelo menos desde 2009. Onde e porquê ela está a ocorrer. Sabendo que a população portuguesa está a envelhecer, principalmente na população mais idosa, é natural que a mortalidade aumente por essa razão. Por exemplo, há cada vez mais pessoas com 75 anos ou mais, o que significa que a idade média da população residente em Portugal com mais de 74 anos é cada vez maior, ou dito de outra forma, a esperança média de vida acima dos 65 anos (população não-activa) tem vindo a aumentar. Com esta realidade de envelhecimento da população é natural que a comorbilidade dos mais idosos aumente, fazendo aumentar a respectiva mortalidade. Ou seja, é e será cada vez maior o número de óbitos por milhão de habitantes nestas faixas etárias devido a causas naturais, pelo menos enquanto a população estiver a envelhecer no topo da pirâmide demográfica.

Uma primeira análise que pode ser feita sobre o excesso de mortalidade associada ao envelhecimento da população é verificar para 2022 o excesso de mortalidade de diferentes grupos etárias (Figura 5). Por exemplo, comparar o excesso de mortalidade total com o excesso de mortalidade do grupo dos +75 anos e com o grupo dos 35-74 anos. Aqui constata-se que o excesso de mortalidade total, de todas as idades, é quase exclusivamente justificado com o excesso de mortalidade que se verifica no grupo dos +75 anos e que abaixo dos 75 anos não só não há excesso de mortalidade, como esse excesso apresenta uma anomalia negativa (défice de mortalidade, houve menos mortes que a média de referência) a partir de Março de 2022. E ainda, que as mortes que ocorreram nos períodos das ondas de calor de Junho e Julho foram exclusivamente nas faixas etárias acima dos 75 anos.

Uma segunda análise é verificar o peso das faixas etárias acima dos 65 anos (população não-activa) na mortalidade total (Figura 6). Aqui, para além de se verificar um aumento do número absoluto de mortes nos +65 anos desde 2014 (ano de início da mortalidade por grupo etário no SICO-eVM), tem aumentado também o seu peso na mortalidade global. Nos mais de 65 anos o peso da sua mortalidade passou dos 84% em 2014 para os 87% em 2022. Já nos +85 anos esse aumento é muito superior, passando dos 37% de mortes para os 45% das mortes totais, o que corresponde a um aumento de 22% em 8 anos.

Vejamos agora uma análise mais detalhada e comparativa da mortalidade total com a mortalidade da faixa dos mais idosos (Figura 7). Pegando na mortalidade acumulada até dia 8 de Agosto, desde 2014 a 2022, verifica-se que o aumento natural de mortalidade global é semelhante ao aumento da mortalidade no grupo dos +75 anos. Comparando essa mortalidade, de todas as idades e dos +75 anos, de forma normalizada (dividindo os valores pela sua média) verificamos que o comportamento é praticamente idêntico, com semelhante taxa de aumento anual e comportamento pontuais praticamente iguais. Quando uma está acima da média a outra também está e, de igual modo, quando estão abaixo da média. E essa correlação pode ser demonstrada numericamente, determinando-se um coeficiente de correlação de r=0.997 (elevadíssima correlação). Ou seja, o aumento de mortalidade que se tem vindo a verificar desde, pelo menos 2014, é exclusivo do grupo etário mais idoso, acima dos 75 anos.

Com o envelhecimento da população no topo da pirâmide demográfica (aumento da média das idades da população acima dos 65 anos), aumenta a morbilidade desta população envelhecida e, consequentemente, a respectiva mortalidade.

A letalidade média por causa da Covid é de 26 óbitos/dia (23 óbitos/dia para a população acima dos 75 anos), e o aumento médio de mortalidade por envelhecimento da população é de 2.3 óbitos/dia/ano (estimado entre 2009 e 2019), o que em 5 anos perfaz 12 óbitos adicionais face ao período de referência 2015-2019. Somando estes valores, temos um aumento de mortalidade, por envelhecimento da população mais a causa adicional de morte por Covid-19, de 38 mortes diárias a mais em 2022 (35 mortes diárias a mais para os +75 anos). Em 220 dias (desde 1 de Janeiro), o acumulado destas duas causas corresponde a um adicional de 8252 mortes a mais (220 dias vezes 38 óbitos adicionais) face ao ponto médio do período de referência (e um adicional de 7590 para os +75 anos). O que, com grande evidência, justifica os 8014 óbitos de excesso de mortalidade acumulada que se verificam em 2022 até à presente data, face ao período de referência de 2015-2019 nos primeiros 220 dias do ano (até dia 8 de Agosto).

Conclui-se assim, que: 1) o excesso de mortalidade em 2022, do ponto de vista estatístico, apenas ocorreu em Junho e Julho associado às respectivas ondas de calor; 2) há um aumento natural de mortalidade que se tem vindo a verificar, pelo menos desde 2009; 3) esse aumento de mortalidade se deve essencialmente ao envelhecimento da população e que é de esperar que continue nos próximos anos; e 4) que a Covid-19 veio amplificar esse aumento natural de mortalidade, pois a doença atinge em termos de mortalidade, essencialmente, a população acima dos 75 anos.

Pretendeu-se aqui demonstrar e evidenciar as causas do excesso de mortalidade que se tem vindo a verificar em 2022 até à data, bem como, esclarecer todas as dúvidas que se têm levantado sobre estas causas que estão por detrás do aumento de mortalidade observada.

Na racionalidade e no método científico o homem encontra os seus melhores amigos para a correcta interpretação da natureza, e no empirismo popular o seu pior inimigo. Não se deixe enganar, confie na ciência.