A sociedade portuguesa tem vindo a transformar-se profundamente nas últimas décadas, especialmente no que diz respeito às estruturas familiares. O casamento tradicional deixou de ser a única forma reconhecida de relação familiar, dando lugar a uma diversidade de situações: uniões de facto, casamentos entre pessoas do mesmo sexo, ou famílias formadas por membros de relações anteriores. Contudo, enquanto a sociedade evoluiu, a lei sucessória portuguesa permanece ancorada em princípios que já não reflectem a realidade atual.

O regime da sucessão legitimária, praticamente inalterado desde o Código Civil de 1966, está assente na proteção dos laços familiares através da reserva de uma quota obrigatória da herança para determinados herdeiros (cônjuge, descendentes e ascendentes). Este modelo, que se pretendia garantir a transmissão de bens dentro da família, torna-se hoje um entrave à autonomia individual e à liberdade de disposição do património.

De acordo com a Constituição da República Portuguesa, no artigo 61.º, n.º 1, “a todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte”. Contudo, a sucessão legitimária impõe um limite a este direito, restringindo a liberdade do titular do património de decidir, em pleno uso das suas faculdades, o destino dos seus bens. Tal significa que, mesmo que a vontade do falecido seja consignada em testamento, esta não pode prevalecer sobre a legítima reservada aos herdeiros legitimários. Além disso, doações feitas em vida aos mesmos herdeiros são sujeitas a colação, ou seja, devem ser contabilizadas e descontadas na quota a que têm direito na herança.

O contexto social de 1966, quando o atual Código Civil foi redigido, é diametralmente diferente do Portugal contemporâneo. Na altura, a estrutura familiar tradicional predominava, e as relações patrimoniais tinham um caráter coletivo, subordinadas à ideia de manter os bens dentro da família. Hoje, as dinâmicas familiares são mais diversificadas, e a relação dos indivíduos com o seu património é cada vez mais pessoal.

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Por outro lado, a sucessão testamentária, que confere liberdade para dispor dos bens segundo a vontade do falecido, é o regime que melhor se adequa aos princípios constitucionais, nomeadamente o respeito pela propriedade privada e pela autonomia individual. Porém, o desincentivo cultural ao testamento, aliado à obrigatoriedade da sucessão legitimária, limita a liberdade dos cidadãos e perpetua situações de injustiça, em que herdeiros legitimários podem ser favorecidos, mesmo quando o falecido desejaria outro destino para os seus bens.

A imposição de uma quota legitimária representa, na prática, a prevalência da vontade do legislador sobre a do falecido, contrariando os princípios de autonomia privada. É inegável que existem situações em que o afastamento de determinados herdeiros da herança se justifica plenamente, quer por motivos éticos, quer pela falta de vínculo emocional ou cuidado durante a vida do autor da herança.

Num sistema onde coexistem a sucessão testamentária (voluntária) e a sucessão legítima (legal), ambos os princípios do direito sucessório e os valores constitucionais podem ser respeitados. A sucessão legítima garante um regime de substituição para os casos em que o falecido não expressou a sua vontade em vida, enquanto a sucessão testamentária permite que cada indivíduo disponha livremente do seu património.

A revogação do regime da sucessão legitimária tornaria o processo sucessório menos burocrático e mais célere, reduzindo os conflitos entre herdeiros e descongestionando tribunais e cartórios notariais. Ao eliminar a imposição de quotas obrigatórias, permitir-se-ia uma maior harmonização entre a vontade do falecido e o destino do seu património, assegurando uma transmissão mais justa e eficaz dos bens.

A morte é uma certeza na vida de todos, e a decisão sobre quem merece herdar o nosso património deve ser respeitada. Cada pessoa é a mais qualificada para avaliar quem melhor cuidará dos bens que acumulou ao longo da vida. Assim, é urgente repensar o regime da sucessão legitimária, abolindo este modelo obsoleto e promovendo a liberdade individual, em consonância com os valores de uma sociedade moderna, liberal e democrática.