“Olá Valete, o meu nome é Joana, até curtia a tua música mas essa ideologia não é tão bacana”.

Caro leitor, peço desde já desculpa pelo fraco verso, mas não resisti. Isto porque soube, ao ler recentemente um artigo no jornal Público que o rapper Valete uniu-se à Junta de Freguesia de Benfica para criar uma escola “contra o individualismo”.

O projeto de nome “Horizontal 360º”, em si e como é descrito, até parece ser algo de muito positivo  e útil, já que estamos a falar de atividades extracurriculares que visam ensinar aos adolescentes e  jovens-adultos várias soft skills e competências cívicas que não estão presentes no programa de  ensino oficial, como culinária, nutrição, saúde mental, escrita criativa, e até como passar um recibo  verde. O problema aqui está em perceber se, por trás desta iniciativa, existe alguma agenda para  implementar uma mensagem ideológica específica, sobretudo quando sugerem também o ensino  de “valores comunitários”. Quando os dois grandes chavões utilizados para descrever este projeto  são“acabar com o individualismo” e “ajudar a corrigir o desequilíbrio entre classes”, soa o alarme.

Ora, vamos por partes. O individualismo, apesar de ser utilizado quase sempre no sentido pejorativo  como sinónimo de egoísmo e egocentrismo, é o reconhecimento do valor da autonomia individual,  com o objetivo de satisfazer características inatas de cada indivíduo em busca da sua liberdade. Como diria o filósofo inglês John Locke, o “pai” do liberalismo, “o mais precioso de todos os bens é o poder sobre nós mesmos”. Nesse sentido, esta iniciativa acaba por ir de encontro aos ideais do  individualismo, dotando os cidadãos de ferramentas de desenvolvimento pessoal que o façam  destacar do massificado e despersonalizado ensino tradicional, tornando-o mais preparado e  competente para ajudar a sua comunidade.

Já em relação ao “desequilíbrio entre classes”, até me  sinto mal em ter de comentar esta frase em pleno séc. XXI. As únicas classes que existem na  sociedade são os termos socioeconómicos definidos pelo Estado para determinar o escalão dos  impostos que lhe devemos pagar. Definitivamente que as desigualdades económicas são uma  realidade: existem pessoas na pobreza extrema; já praticamente não existem pessoas na antiga  “classe média”; e um português que recebe 3.000€ brutos mensais é hoje considerado rico, sendo  que em países como a Alemanha, o salário bruto médio é mais de 4.000€. Todas estas pessoas são  singulares, de todas as cores e feitios, com contextos individuais nada uniformes. As únicas coisas  que elas têm em comum é mesmo o facto de viverem num país que perpétua a precariedade como  norma e com um sistema de ensino coletivista obsoleto que torna os cidadãos cópias robotizadas,  desprendidas de espírito crítico individual.

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Valete justifica a criação deste projeto como uma resposta ao estado atual do hip-hop, estilo  musical caracterizado pela narração do meio envolvente, considerando que este atualmente perpetua um discurso “individualista”, vazio, neutro e lúdico. Eu sempre fui uma grande fã de hip hop, e tenho consciência do seu poder no relato da realidade urbana como catalisador de mudança  da sociedade. “Changes” (1998) de Tupac Shakur, por exemplo, é para mim uma das melhores  músicas de sempre, fazendo referência às guerras no Oriente Médio, violência policial, racismo,  perpetuação da pobreza e, principalmente, ao ciclo vicioso que a guerra das drogas tem na cultura  urbana afro-americana.

Na verdade, pouco se alterou na sociedade nestes 26 anos, mas na minha  perspectiva, o hip-hop também não mudou muito, apenas se amplificou. Hoje em dia, desdobrou-se numa panóplia de subgéneros, com milhares de artistas com historiais muito diferentes, pelo que as suas mensagens também são completamente diversificadas. Achar que o  hip-hop de qualidade é aquele que obrigatoriamente tem de passar uma mensagem de consciência  social ou de revolta política, é uma visão conservadora e desajustada do mundo plural e  multicultural onde vivemos. Por outro lado, se o julgamento ao hip-hop “individualista” centra-se na missiva da ambição e motivação individual, já que muitas vezes estas músicas contam histórias de  como os cantores eram pobres e tornaram-se ricos (vangloriando-se por terem subido no elevador  social e, consequentemente, terem ajudado a sua comunidade), está repleto de barreiras  ideológicas negativas e preocupantes.

Tudo isto torna-se ainda mais inquietante quando temos o conhecimento que uma organização governamental, neste caso a autarquia local de Benfica (que é regida pelo Partido Socialista), é parte  integrante do projeto. Apesar de não conseguir perceber ao certo pelo texto qual o grau de  envolvimento, pois apenas está referido que a autarquia irá definir, consoante a declaração de  rendimentos das famílias, “valores de pagamento mensais abaixo da média”, questiono se serão os responsáveis pelo seu financiamento (público). Eu sou a maior defensora de iniciativas como esta,  que coloquem os indivíduos a explorar as suas competências e a desenvolver consciência cívica,  coisa que faz realmente muita falta neste mundo. Mas também sou muito céptica em relação a  projetos públicos, com financiamento de todos os contribuintes, cujo intuito seja (de forma direta  ou indireta) instruir certas ideologias dissimuladas nos jovens. Porque uma coisa é usar o dinheiro  do Estado para dotar os cidadãos de ferramentas para o seu desenvolvimento pessoal, outra são  ações de propagação ideológica, que se assemelhem centros de educação religiosa.

Afinal, qual é  mesmo a religião mais popular do mundo? “Na nova ordem, o Socialismo triunfará ao capturar  primeiro a cultura através da infiltração nas escolas, universidades, igrejas e nos meios de  comunicação, transformando a consciência da sociedade”-Parece que o sonho do filósofo marxista  italiano Antonio Gramsci já se concretizou.