“Todo o professor, seja qual for a sua especialidade, é acima de tudo um mestre de humanidade”. Esta frase de Georges Gusdorf, professor e filósofo francês, autor de um livro extraordinário que todos os professores deviam ler (Professores para quê?, Livraria Morais Editora, Lisboa, 1967), diz bem acerca do ideal a que qualquer professor deve aspirar, ao serviço da educação integral do ser humano, e não apenas do ensino em sentido estrito. Educar, do latim educcere, significa “extrair”, “tirar para fora”. Não se trata apenas de atafulhar o aluno com conteúdos, mas de o desafiar a ser ele mesmo, a partir de si próprio, para que aprenda a tirar de si o melhor, o mais belo e mais verdadeiro. No fundo, a ser senhor de si, das suas capacidades e das suas emoções, para que se cumpra na e pela liberdade autêntica. Educar é uma tarefa tão difícil que Kant a reputou como a mais difícil das tarefas humanas, e Freud dizia mesmo ser impossível.
Hoje, está bom de ver que a nossa conceção de educação, ou dito com mais rigor, de ensino, está bastante longe do ideal de uma educação à altura humana. Em vez de humanização, o que temos é desumanização ou, noutra palavra, alienação. E esta não está apenas no peso excessivo que se dá à “cabeça cheia” em detrimento da “cabeça bem feita”, para usar a famosa dicotomia criada por Montaigne e desenvolvida por Edgar Morin. Está também na funcionalização-proletização da profissão do professor que, no nosso país, significa três coisas: burocracia em excesso, incerteza (por vezes angustiante) e pagar para trabalhar (nomadismo crónico).
Ser professor em Portugal, particularmente no ensino público, é hoje infelizmente uma aventura que não conduz à ventura, mas ao desalento, ao cansaço sem nome, à infelicidade. Como se não bastasse o excesso de burocracia, os salários desadequados (sobretudo para os professores deslocados), as turmas enormes e cheias de alunos contrariados, quando não mesmo mal-educados, ou tão-só cronicamente incapazes de atenção, o professor tem ainda de lidar com a instabilidade económica, familiar, etc. O caso gritante do professor de Ponte de Lima que, colocado a 400 km de casa após 20 anos de profissão, tem de morar numa carrinha porque não ganha o suficiente para pagar uma renda em Setúbal, é tão-só mais um exemplo extremo do estado a que chegamos. Não admira, portanto, que a grande maioria dos jovens não queira seguir a carreira de professor, para mais tendo crescido numa sociedade que a desvaloriza sistematicamente, a desautoriza, funcionaliza e proletariza. E temos hoje uma situação cada vez mais insustentável em que o crescimento do número de alunos de ano para ano é inversamente proporcional ao do número de professores, o que se traduzirá mais ainda em perda de qualidade educativa. Desde logo porque se está a abrir as portas da carreira docente a quem não tem profissionalização, e até mesmo a quem não tem licenciatura, como acontecia no pós-25 de abril.
Ora, é sabido que as necessidades de um sistema público são grandes e sempre crescentes, e não somos um país de vastos recursos, mas se não investirmos na educação, se não a reformarmos, se nos resignarmos ao declínio e só pensarmos em administrar o status quo imediato, é o próprio futuro do país que hipotecamos. Ainda que o maior crime, é preciso dizê-lo, seja o de hipotecar as próprias vidas. É que, sem educação no sentido mais amplo, sem humanização, o ser humano instrumentaliza-se, esvazia-se espiritualmente, torna-se massa, técnica sem rosto, ciência sem consciência, indivíduo e não inteiramente pessoa. E ela é tão mais urgente e necessária quanto o nosso mundo hoje enfrenta riscos e incertezas nunca antes vistos. É o risco da corrupção das democracias, e mesmo da sua perversão, que medra no caldo da ignorância e da falta de sentido crítico; é o risco de um ideal neopositivista de progresso, para o qual progresso tecnológico é sinónimo de progresso humano e moral, sem se ter em conta o princípio indeclinável da responsabilidade (penso, por exemplo, no desenvolvimento estonteante e em larga medida imponderado da inteligência artificial); é o risco dos tribalismos/chauvinismos/nacionalismos em expansão que segue em contracorrente com um mundo que, dado o crescimento demográfico exponencial, deveria caminhar para a unidade na fraternidade e na cooperação, acima dos particularismos.
Enfim, senhores governantes, líderes partidários e demais detentores de cargos públicos de responsabilidade: exorto-vos a abandonar a lógica viciosa da competição partidária a qualquer custo, essencialmente inimiga da verdade e amiga do poder pelo poder, ou do poder pela influência, a produzirem em conjunto, e em boa fé, uma reforma da educação para os próximos vinte e cinco, trinta anos. Uma reforma que abranja todos os domínios, das carreiras profissionais aos programas currículares, tendo em conta os desafios do presente e do futuro, e o melhor que sabemos acerca das dimensões psicológica, antropológica, filosófica e espiritual do ser humano. Uma reforma que promova a autoridade e a dignidade do professor como “mestre de humanidade”, reconhecendo que este precisa de paz, estabilidade e tempo para desempenhar bem o seu papel intransferível, de forma necessariamente reflexiva e ética. Uma reforma que reconheça, por outro lado, que o aluno é uma pessoa a haver, quer dizer, um indivíduo multidimensional que aspira a desenvolver a sua personalidade de forma plena e equilibrada; o mesmo é dizer que ele é um ser incomensurável, cuja sede de sentido e realização extravasam sempre este ou aquele papel específico que, social, cultural ou profissionalmente, a sociedade o força a desempenhar, cada vez mais como instrumento da máquina social e/ou económica, e menos como fim em si mesmo, kantianamente falando.