“Todos conhecemos por nós próprios a obstinação, a resistência ao auto-esclarecimento, (….) o prazer no exercício da força e da violência, o arrebatamento colectivo nas oportunidades que a guerra oferece, alimentado pela esperança cega da vitória e pelo primário espírito de aventura que tudo sacrifica e nem a morte receia. Verificamos, por outro lado, que as multidões estão pouco dispostas à renúncia, à economia, à paciência e à sensata construção de situações sólidas e conhecemos igualmente as paixões que desenfreadamente abrem caminho por todos os bastidores do espírito. (…) Por estes motivos parece quase inevitável o limite em que, sob qualquer forma, de novo irromperá a violência.” (Karl Jaspers, Iniciação Filosófica)

Vão soando avisos aqui e ali sobre a eventualidade de uma guerra direta entre a NATO e a Rússia. Parece que há quem esteja preocupado em preparar a opinião pública para essa eventualidade – se é que, nos bastidores que movem o mundo, não se decidiu já que será mais do que uma eventualidade, e em breve. O maior exercício militar da NATO desde a Guerra Fria começou no dia 22 de janeiro – o “Steadfast Defender 24” -, mobilizando 90 mil soldados da Aliança. A guerra na Ucrânia está num impasse que, pouco a pouco, parece começar a pender para o lado russo, e a expetativa de uma vitória de Trump nas próximas eleições americanas faz temer que os ucranianos tenham mesmo de ceder território em troca da paz.

A situação parece instável e não augurar nada de bom, e a qualquer momento podemos ser surpreendidos por uma qualquer “falsa bandeira”, conjurada nos bastidores do poder, que lance o Ocidente numa guerra de consequências imprevisíveis. Porque se traçaram linhas vermelhas claras: a Rússia não pode de todo vencer; a vitória ucraniana tem de ser absolutamente total, e a rendição russa, incondicional. Dizem-nos que não existe alternativa. Mas a realidade vai começando a desmenti-lo. A Rússia, bem entricheirada, armada e municiada, virtualmente intocada pelas sanções, faz finca-pé no já conquistado e não tenciona recuar. Entretanto, a Ucrânia vai construindo pouco a pouco o seu complexo militar, o que pode durar vários anos; mas os apoios internacionais, sempre na ordem dos milhares de milhões, não podem durar para sempre. É verdade que a Rússia acabou por recuar no Afeganistão, perante aquelas trupes maltrapilhas de mujahedin – os antepassados dos talibã atuais, cuja resistência e intrepidez não carece já de confirmação, depois do falhanço americano no mesmo território. Porque não hão, por maioria de razão, os russos de recuar também na Ucrânia, cujos soldados são e serão superiormente armados e treinados? – perguntar-se-á.

É que está muito mais em jogo na Ucrânia do que no Afeganistão alguma vez esteve. No Afeganistão, tratou-se de tentar repor o status quo comunista numa era em que ceder qualquer um dos territórios da URSS e respetiva esfera de influência significava, para os líderes soviéticos, uma demonstração de fraqueza perante o Ocidente; na Ucrânia, por outro lado, trata-se de impedir que uma nação eslava – irmã, portanto -, com a qual a Rússia partilha laços históricos profundos, caia na esfera de influência do Ocidente e da NATO. Perdê-la é um luxo ao qual o regime russo não se pode dar, porque não voltaria a recuperá-la, e teria de conviver paredes meias com os valores da democracia europeia. Com um líder democrático dotado de um outro sentido da história que não o de Putin, que é o da Rússia imperial soviética da Guerra Fria, talvez tal fosse possível impor cedências. Mas sendo irrealista prever tal reviravolta na política russa, torna-se também irrealista admitir que o regime possa aceitar capitular cedendo os territórios conquistados, vergado por uma derrota militar convencional. E depois há as armas nucleares de que dispõe em grande número, só equiparado ao dos EUA…

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Consequentemente, pode haver, e há certamente quem ache que só a intervenção direta da NATO pode pôr fim ao conflito honrando as linhas vermelhas traçadas. E quanto antes melhor. Isso, ou uma guerra de atrição durante décadas, com o povo ucraniano a ser sacrificado sozinho, ou até que os próprios ucranianos desistam e ponham no poder um dirigente pró-russo que aceite tudo o que lhe impuserem.

Interesses mais altos, mais ou menos confessáveis, ou simplesmente inconfessáveis, de supremacia geopolítica e comércio de armamento podem estar a levar-nos, paulatinamente, para uma guerra generalizada na Europa – outra vez. Se não há alternativa diplomática para uma situação que foi colocada, desde o início, em termos de tudo ou nada, que resultado se pode esperar? Se se trata de facto, na essência, de uma luta entre duas visões do mundo, posta em termos de democracia versus autocracia, e se para mais se vê na guerra aberta uma oportunidade de refazer as coisas geopoliticamente, de criar uma nova ordem mundial favorável a uma das partes, de levar a cabo reformas que só pela vitória da força podem ser realizadas – como a do Conselho de Segurança da ONU, onde a Rússia detém ainda direito de veto, tal como a China -, então não será de esperar um compromisso que evite o conflito.

Infelizmente, perante os grandes quadros da geopolítica do futuro, quem os elabora e tem o poder de decidir, as pessoas concretas, os cidadãos, não serão mais do que estatísticas, danos colaterais, carne para canhão. Quem decidir (ou decidiu) pela guerra, saberá realmente o que está a fazer? Será possível controlar o monstro depois de aberta a porta? Alguma vez foi possível tal grau de controlo, em algum conflito? Como diz Jaspers na citação em epígrafe, é sempre difícil esconjurar do ser humano um certo gosto pelo abismo, pela aventura que a guerra promete, o prazer pelo exercício da força e da violência. “A personagem central do livro de Elie Wiesel, Testamento de um poeta judeu assassinado, escreve a dada altura que “qualquer guerra liberta forças demenciais. Uma vez desencadeadas, é impossível travá-las. O Talmude assim o diz: se o deixarem, o Anjo Exterminador maltratará sem discernimento; ceifará os Ímpios e os Justos. Em tempo de guerra, a humanidade enlouquece.”

Esperemos que, no meio da desrazão que (des)governa muitos, haja quem não se deixe tentar pela possibilidade de libertar o “Anjo Exterminador”, iludindo-se quanto à sua real capacidade de o controlar. O que a História mostra é que, uma vez libertado, ele não fica saciado senão depois de deixar atrás de si miríades de vítimas, sem olhar a nada.

1. Wiesel, Elie, Testamento de um poeta judeu assassinado, trad. de Tereza Coelho, Lisboa: Planeta, 1999, p. 166.