No rescaldo do Relatório Final da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica Portuguesa, vêm à discussão, agora, várias propostas de reparação, de reação. É interessante analisar as sugestões e recomendações emergentes do Relatório, que se transcrevem:

“IGREJA:

  • Proposta de uma nova Comissão para continuidade do estudo e acompanhamento do tema (multidisciplinar, membros internos e externos à Igreja).
  • Reconhecimento, pela Igreja, da existência e extensão do problema e compromisso na sua adequada prevenção futura.
  • Cumprimento do conceito de «tolerância zero» proposto pelo Papa Francisco.
  • Dever moral de denúncia, por parte da Igreja, e colaboração com o Ministério Público em casos de alegados crimes de abuso sexual.
  • Pedido efetivo de perdão sobre as situações que aconteceram no passado e sua materialização.
  • Formação e supervisão continuada e externa de membros da Igreja, nomeadamente na área da sexualidade (sua e das crianças e adolescentes).
  • Cessação de espaços físicos fechados, individuais, enquanto locais de encontro e prática religiosa.
  • Medidas preventivas eficazes, incluindo «manuais de boas práticas» e «locais de apoio ao testemunho e acompanhamento das vítimas e familiares».
  • Apoio psicológico continuado às vítimas do passado, atuais e futuras (responsabilidade da Igreja e articulação com o Serviço Nacional de Saúde).

SOCIEDADE CIVIL:

  • Necessidade da realização de um estudo nacional sobre abusos sexuais de crianças nos seus vários espaços de socialização.
  • Reconhecimento inequívoco dos Direitos da Criança.
  • Empoderamento das crianças e famílias sobre o tema: o papel da Escola.
  • Aumento da idade da vítima para efeitos de prescrição de crimes.
  • Celeridade da avaliação e resposta do sistema de justiça.
  • Reforço do papel da comunicação social na investigação e tratamento do tema.
  • Aumento da literacia emocional sobre as verdadeiras necessidades do desenvolvimento infantojuvenil, sobretudo no campo afetivo e sexual.”

(Relatório Final da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica Portuguesa, ponto 34, pp. 39-40, consultado online aqui.)

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A divisão é clara, mas é extensa. Muito meritória e é o exemplo claro do cariz técnico e isento desta Comissão e do trabalho que apresenta. Por um lado, a Igreja e, por outro, a Sociedade civil. Por um lado, a necessidade de prevenção (muito acentuada) e as propostas de reparação. Foquemos neste último. A reparação. Do dano, do flagelo, da dor e do ser humano. A reparação da vítima.

À Igreja é sugerido que, efetivamente, peça “perdão sobre as situações que aconteceram no passado e sua materialização” e que assuma a responsabilidade pela articulação com o SNS, que permita veicular “apoio psicológico continuado às vítimas do passado, atuais e futuras”.

À Sociedade Civil – na sua tarefa legislativa e na realização da Justiça – é recomendado que se altere a lei, de modo a permitir o “aumento da idade da vítima para efeitos de prescrição de crimes” e que se criem e implemente mecanismos que garantam a “celeridade da avaliação e resposta do sistema de justiça”.

Não haverá, entre todos quantos sentimos um “murro no estômago” com as revelações feitas, alguém que discorde de cada uma destas sugestões. Chegam tarde, chegam depois da casa roubada. Não são, por si, suficientes para repor ou reparar os danos de décadas de abusos, de milhares de crianças sem voz. De incontáveis situações que podiam ter sido evitadas.

Pois é precisamente nesta lacuna que soam agora vozes em apelo a uma “indemnização” às vítimas, que se pede que seja paga pela Igreja. Não nos cabe uma opinião, mas eventualmente uma reflexão sobre esta sugestão, que também não coube à Comissão – e não poderia – mas que se pode reputar como lógica.

Aqui, mais uma vez, caberá a distinção entre o que é regulado pela Sociedade Civil, aquilo a que chamamos de “indemnização”, juridicamente, e aquilo que surge como uma compensação, voluntária, institucional e direcionada, ou seja, que a Igreja poderá determinar atribuir às vítimas confirmadas.

A primeira entronca com a sugestão de aumentar a idade da vítima para efeito de prescrição destes crimes. Se grande parte dos factos apurados pela Comissão não estivessem prescritos, uma parte muito mais substancial das vítimas poderia, hoje, iniciar um procedimento criminal e pedir uma indemnização cível. Esta indemnização é julgada e devida pelo autor do crime – pelo autor material, pelos coautores, pelo autor imediato e mediato. Ou seja, o criminoso, o “Padre X” (a referência resulta do Relatório, em que as referências aos agressores nos testemunhos são assim colocadas e a posição de Padre é associada à do alegado agressor, em 77% dos casos apurados), seria condenado a pagar à vítima uma indemnização cível. O Código Civil regulamenta os pressupostos geradores da responsabilidade civil e subsequente obrigação de indemnizar. Neste espectro, a Igreja, enquanto instituição, não seria condenada a pagar uma indemnização à vítima pelos danos não patrimoniais apurados.

Mas não é disto que se fala. Fala-se de uma obrigação moral de a Igreja Católica compensar as vítimas destes crimes. De compensar esse dano moral como forma de minimizar o seu papel nos factos. Os agressores aqui visados tinham (ou têm) uma ligação à Igreja Católica e é evidente que uma boa parte dos factos é agravada (a montante, facilitada) pela confiança que o Padre, Professor, Abade/Madre/Frade/Freira/Irmão/irmã, Seminarista, Catequista, Diretor, Escuteiro, Acólito, Sacristão, Leigo, Chanceler, Capelão, Bispo, Diácono ou Outro geraram na criança, nas suas famílias ou na comunidade. Pelas vestes atribuídas pela Igreja Católica. Muitas das vezes usando o epíteto da fé e uma determinada posição hierárquica ou institucional para levar a cabo os crimes e, in fine, encobri-los. Estes crimes não são praticados pela Igreja. É evidente. Mas são praticados por pessoas que se servem desta Instituição para praticar os crimes. É evidente, assim, que, moralmente, existe uma obrigação indireta da Igreja Católica para com as vítimas. É evidente essa obrigação moral na tarefa de prevenção – se não antes, de ora em diante. É evidente que deve atuar a jusante, como sugerido, no apoio psicológico que estas vítimas têm de ter e não podem – nem devem – custear.

Mas, e na compensação? Pensemos nas indemnizações a vítimas de crimes violentos (terrorismo, criminalidade violenta e criminalidade especialmente violenta) ou de violência doméstica. Praticadas por pessoas, contra pessoas. Os agressores e a agressão não se enquadram especialmente numa instituição. Mas o Estado Português determinou, pela Lei n.º 104/2009, de 14 de setembro, um regime de concessão de indemnização a estas vítimas. Em determinadas situações, o Estado Português adianta estas indemnizações, com limitações quantitativas e qualitativas, sub-rogando-se nos direitos dos lesados. Se pensarmos nesta realidade, em vigor desde 2009, e se dermos um passo atrás e olharmos para os resultados deste estudo, pela sua abrangência e alcance, percebemos que o flagelo é imputável a toda a Igreja Católica Portuguesa e que as suas vítimas são pessoas também a si ligadas. Ou seja, o Estado Português assume a responsabilidade pelos atos do criminoso e perante a vítima. A Igreja Católica Portuguesa deve encontrar o caminho para assumir essa responsabilidade também pelos agressores e pelas vítimas, ambos abrangidos pelos seus pilares. A Igreja Católica não é o criminoso. Estes crimes não se circunscrevem aos que ocorrem debaixo do teto da Igreja Católica. Mas aos crimes que assim ocorreram, tendo o estudo desta Comissão merecido a confiança e reconhecimento por parte da Igreja Católica, não é despropositado que o ressarcimento, que não pode – pela prescrição ou morte do perpetrador – ou não será – pela falta de meios económicos ou pela demora na realização da justiça – cumprido pelo agente do crime, o seja pela Instituição da qual ele se serviu.

Os conceitos são perversos. Mas é nesta separação entre a posição que cada parte assume na análise da questão global, que podemos encontrar um eventual caminho. Que não será de reparação, nem de indemnização, em sentido jurídico. Mas de partilha de uma responsabilidade que não é diretamente da Instituição, mas de algo maior do que o agressor. A Igreja Católica não pode julgar nem condenar. Pode, no limite, afastar do seu escudo, sadicamente facilitador, aquele que tenha praticado este crime, pois, como recentemente esclareceu o Papa Francisco, “os crimes de abuso sexual ofendem Nosso Senhor, causam danos físicos, psicológicos e espirituais às vítimas e lesam a comunidade dos fiéis.” A punição para lá desta cabe à Sociedade Civil. A indemnização pelos danos causados às vítimas é devida pelo Padre X, se for condenado. Uma compensação a entregar pela Igreja Católica será coerente com os seus princípios e o corolário de uma atitude meritória e destemida, que peca apenas por tardia.

Os valores? Os critérios de atribuição? Só a Igreja os pode determinar. Porque esta compensação não é legalmente devida ou regulada. Porque é a primeira vez que, em Portugal, algo assume, nesta Instituição, este tipo de impacto e mediatismo, não havendo um guião. Porque cada caso é um caso e cada voz é uma ferida com características diferentes e porque a Igreja Católica existe precisamente para ajudar os que sofrem. Haverá, com ampla probabilidade, uma compensação a atribuir pela Igreja que, cremos, será ponderada e respeitadora da intimidade de cada vítima, do seu direito a não ser uma bandeira e moralmente coerente com aquilo que é esta Instituição.