Nos últimos meses as notícias sobre o desenvolvimento da inteligência atingiram um novo pico, depois da recente inovação ao nível de modelos de linguagem complexos como o “ChatGPT” e de um sem número de outras aplicações baseadas em Inteligência Artificial (IA). À sua boleia seguiram-se as manifestações de intenções das grandes tecnológicas, como a Microsoft e a Google, em acompanhar a colocação no mercado destes novos produtos. Testemunhamos hoje uma evolução tecnológica exponencial sem precedentes, mas sabemos que sobre a sigla “IA” paira um enorme desconhecimento.

Recentemente foi publicada uma carta aberta, encabeçada por Elon Musk, onde se alerta para a “corrida desenfreada para desenvolver mentes digitais cada vez mais poderosas”, alegadamente capazes de competir com seres humanos e capazes de fazer perigar a Sociedade como um todo e a Humanidade no longo prazo. Defende-se na referida carta que o desenvolvimento destes sistemas seja suspenso por um período de seis meses, para que as capacidades e perigos destes sistemas possam ser analisados e sejam implementados protocolos de segurança auditáveis e sujeitos a supervisão por parte de entidades independentes. Por fim, propõe-se que os responsáveis da indústria trabalhem em conjunto com os legisladores para acelerar a criação de sistemas governamentais de controlo da IA.

Além de Musk, a carta foi ainda subscrita por um conjunto de outros especialistas que, com um carácter aparentemente benemérito, tentam assim obstaculizar novos desenvolvimentos não controlados da IA. Não podemos, contudo, deixar de assinalar o facto de Musk ter já uma longa história com os sistemas de IA (tendo sido um dos “co-chairs” da OpenAI, detentora do ChatGPT), oscilando entre a ideia de que a IA vai revolucionar ou destruir a Humanidade. Não podemos deixar de questionar se esta mesma posição não será paradoxal, quando poucas semanas antes, o mesmo Elon Musk adquiriu uma empresa especializada no desenvolvimento de soluções baseadas em IA: a X.AI.

Do pedido de “travão” constante na carta aberta parece resultar a verdadeira complexidade desta questão, em particular, a regulatória. Ou seja, existe, por um lado, uma necessidade de travar de forma abrupta a sua implementação e, por outro, uma vontade de investimento/desenvolvimento. Na prática, iniciativas como esta carta têm sobretudo impacto na confiança externa, em particular na perspetiva do consumidor/utilizador final, cada vez mais descrente em relação aos benefícios de tecnologias e receosos relativamente às potenciais consequências sobre as quais, na verdade, estão pouco informados.

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Recentemente, o antigo colaborador da Google Godffrey Hinton, que colaborou diretamente no desenvolvimento de tecnologias baseadas em IA alertou publicamente para os riscos subjacentes ao continuado desenvolvimento da mesma. A este respeito destacou as possíveis consequências da sua utilização com um intuito malévolo. Ou seja, em seu entender, está verdadeiramente em causa um risco relacionado com a utilização humana da IA e não o seu inverso.

Ora, se por um lado, somos constantemente inundados por notícias sobre os riscos e temíveis impactos; por outro, tomamos conhecimento da aplicação de IA em sectores vitais, como seja na saúde para diagnóstico e tratamento de doenças. Mais se diga que apesar dos prognósticos fatalistas que vaticinaram o desemprego em massa, de um relatório recentemente publicado pela Goldman Sachs sobre o impacto da IA na economia e na sociedade resultam conclusões interessantes sobre um possível papel complementar da IA e o aparecimento de novas ocupações profissionais.

Tudo considerado, existe uma necessidade premente de equacionar adequadamente o que é a IA, e quais os seus desafios regulatórios. Há que deixar de lado vieses de partida e preconceções filosóficas, visto que quanto mais objetiva e realisticamente for equacionada a IA, melhor será compreendida e endereçada pelos legisladores/reguladores nacionais. Falar da IA enquanto criatura semiautónoma com a capacidade de desencadear a extinção humana, nada mais é do que improvável, sobretudo numa altura em que é crucial perceber o que está verdadeiramente em causa e como pode ser integrada nos diversos setores de forma regulada.

A União Europeia tem procurado ocupar uma posição de charneira na regulação da IA, contrariando, em parte, a posição que Musk deu a entender, ao afirmar que o regulador está ausente deste debate. Nos últimos dois anos tem sido discutido o Regulamento Europeu para a Inteligência Artificial, de modo a que sejam endereçados os riscos da aplicação de ferramentas com recurso de IA em vários setores, como, por exemplo, o laboral, identificação biométrica, educação e acesso a serviços essenciais. Não ignorando a possibilidade de recorrer a regimes mais flexíveis como as “sandbox”, adotadas por vários Estados-Membros para a criação de zonas livres tecnológicas (evitando, assim, o bloqueio ao seu desenvolvimento) para que ferramentas inovadoras possam ser testadas de forma controlada.

Cremos, portanto, que as questões que se têm levantado a propósito da regulação da IA não podem ser resolvidas mediante um interregno temporal de 6 meses, dependendo, na verdade, o desenvolvimento deste tipo de tecnologias de uma abordagem que priorize a sua implementação sem desconsiderar a proteção dos consumidores, os direitos, liberdades e garantias fundamentais dos cidadãos e os valores intrinsecamente humanos. A regulação tecnológica carece de uma profunda reflexão sobre um conjunto de fatores complexos, desde logo, considerar interromper a sua evolução apenas como último recurso, gerir incertezas do seu impacto no longo prazo, conservar a transparência dos meios utilizados para o seu desenvolvimento e, por último, garantir formas de fomento da confiança dos utilizadores através de uma regulação cuidada, sóbria e impulsionadora de uma inovação ética.

Urge, igualmente, investir na literacia digital e fomentar o espírito crítico da população, para que conscientemente os cidadãos sejam instados a tomar uma posição ativa na promoção e implementação de ferramentas baseadas em IA em linha com os padrões éticos e humanitaristas que, enquanto Sociedade, pretendemos desenvolver e perpetuar independentemente e para lá das revoluções tecnológicas.