Ainda na primeira metade do mês passado, a 8 de Março de 2024, os cidadãos da República da Irlanda foram inquiridos em dois referendos (ou duas questões) intendentes à alteração da constituição desse país. Segundo estimativas mencionadas na imprensa irlandesa, a participação no referendo realizado nessa sexta-feira não foi superior a 50%. A primeira questão, que pretendia alterar o conceito de família, foi rejeitada por 67.7% dos que participaram e a segunda questão, destinada a “obscurecer” o papel das mulheres enquanto mães e responsáveis pelos “deveres domésticos”, obteve uma percentagem de rejeição ainda maior: 73.9%. Neste artigo, debruçar-nos-emos sobre a primeira questão ou referendo.
A primeira questão centrou-se na alteração do artigo 41.º da Constituição irlandesa, que, mesmo não apresentando uma definição concreta de família, informa que o Estado (irlandês) deve reconhecer “a Família como unidade natural primária e fundamental da Sociedade, e como instituição moral possuidora de direitos inalienáveis e imprescritíveis, antecedentes e superiores a todo direito positivo”. Daí, também segundo a constituição, surgem duas implicações: o Estado deve “proteger a Família na sua constituição e autoridade, como base necessária da ordem social e como indispensável ao bem-estar da Nação e do Estado”; deve proteger “com cuidado especial a instituição do Casamento, na qual a Família é fundada, e protegê-la contra ataques”. O objetivo da emenda ou alteração constitucional proposta pelo governo pretendia “modernizar” as referências feitas à família no documento legal hierarquicamente superior da Irlanda. Isso para incluir na noção de família os casais do mesmo sexo, as pessoas que vivem em união de fato, as famílias monoparentais, os casais que coabitam e outros.
Considerar a família como “unidade natural primária e fundamental” de uma sociedade e como uma instituição moral e, portanto, portadora de direitos a serem relembrados e protegidos, é algo intolerável para alguém que pretende “atualizar” a definição de uma realidade social tão complexa. Uma nação em que aqueles que ressentem a influência (para aqueles que, de bom grado, rejeitam a expressão “intromissão”) da Igreja Católica das decisões e nas atividades do Estado e que se dedicam a ativismos hostis à liberdade, à estabilidade e à evolução gradual e devidamente planeada e pensada da sociedade parecem fazer a sua voz ouvir cada vez mais alto teria, mais cedo ou mais tarde, de refletir sobre a facilidade com que um agregado doméstico ou um grupo de pessoas vinculadas de alguma forma pode passar a ser considerado “família”. Igualmente, associar à família características como “constituição” e “autoridade” e considerá-la como fonte do “bem-estar nacional” parece facultar demasiada importância a uma instituição ou a uma realidade social e desviar as pessoas de outras questões supostamente (muito) mais importantes, tais como o nível dos salários, a fiscalização das atividades das empresas e outras na secção da economia. Acrescentando a isso, a identificação do casamento como o fundamento da família e carente de proteção pelo Estado é um princípio que incomodaria desnecessariamente casais de pessoas do mesmo sexo, casais que coabitam e outros exemplos de agregados domésticos ou conjuntos de pessoas.
David Popenoe pertence à categoria de sociólogos que não acham exagerado utilizar o conceito de “enfraquecimento da família” para descrever o que tem acontecido nas sociedades ocidentais. Na sua obra Disturbing The Nest, revela como ponto de partida a definição de família como instituição social: “um conjunto relativamente estável de estruturas sociais (papéis e normas) organizadas para satisfazer algumas necessidades básicas da sociedade”.
Complementarmente, no seu artigo Family Decline In America, que corresponde a um dos capítulos da sua obra War Over The Family, Popenoe, recorrendo sempre a dados relativos aos Estados Unidos da América (EUA), explana o “afastamento relativamente à família nuclear” através da exposição de quatro fatores. Em primeiro lugar, temos o declínio da fertilidade, isto é, do número médio de filhos que uma mulher tem até ao fim do seu período reprodutivo. Aqui, dois aspetos podem ser entendidos como inerentes a um nível mais baixo de fertilidade: uma insatisfação crescente com a parentalidade e a diminuição do estigma associado à ausência de filhos ou descendentes numa família. Em segundo lugar, a revolução sexual apresenta-se como a responsável pela dissociação entre sexo e reprodução, na qual o bem-estar e a concretização pessoais, intra ou extramaritais, já não conseguem ser obtidos sem a ênfase no elemento erótico das relações. A isto vem associada uma aprovação crescente das relações sexuais pré-maritais ou anteriores ao casamento. Em terceiro lugar, evidencia-se uma crescente participação das mulheres no mercado de trabalho, fenómeno que temos vindo a abordar como “feminização do mercado de trabalho”. Em quarto lugar, assistimos ao crescimento das taxas de divórcio, chegando mesmo a ser pertinente falar-se de uma “revolução do divórcio”, que inclui o aumento da probabilidade de um casamento terminar em divórcio ao invés do falecimento.
Destes quatro fatores resulta, segundo Popenoe, uma nova experiência das famílias e nas famílias. Para além da redução das funções da família e da diminuição da importância do grupo de parentesco, duas tendências já evidentes mesmo antes da chegada da Revolução Industrial, as sociedades modernas industriais deparam-se com a dissolução do núcleo da unidade familiar, que é aquilo que nos deve preocupar mais: as unidades nucleares estão a dar lugar às famílias monoparentais, às famílias compostas por padrastos, a casais em coabitação e a casais do mesmo sexo. O crescimento do número de famílias monoparentais, tanto em termos absolutos como relativos, ocorre devido a rupturas de casamentos (e de relações), ao declínio do casamento e à retração ou abandono por parte dos homens.
Uma percentagem cada vez maior de crianças e jovens terão vivido numa família monoparental no decorrer da sua vida. Para além disso, a proporção da vida adulta de uma pessoa passada com o marido ou a esposa e filhos é cada vez menor. Portanto, já aqui se demonstra uma alteração clara da conectividade das pessoas à instituição da família. Devemos acrescentar que o caso norte-americano permitiu a intensificação do problema da pobreza infantil, com o aumento do número de crianças norte-americanas situadas abaixo do limiar da pobreza. Igualmente, assistimos a uma mudança substancial do carácter psicológico das relações maritais: o casamento deixa de ser observado enquanto obrigação ou conveniência social, essencial para a procriação e a segurança económica, e passar a ser entendido como fonte de auto-congratulação e prazer, pelo que os parceiros passam a ser escolhidos primariamente como companheiros pessoais e, muitas vezes, temporários.
Esta última é precisamente o que se costuma designar a “desinstitucionalização do casamento”: o casamento deixa de ser prescrito e regulado por normas e obrigações sociais aplicadas na generalidade e passa a ser uma relação voluntária que os indivíduos podem iniciar e romper segundo a sua vontade. Um quadro legal que facilite o divórcio e que seja menos exigente quanto ao casamento e que seja é um dos indicadores desta “desinstitucionalização”. Outro indicador é, mais uma vez, o aumento da taxa de divórcios, que pode ser provocado pelo aumento das expetativas quanto ao potencial das relações no que toca ao fornecimento de felicidade pessoal e pelo decréscimo de sanções à ruptura de casamentos. É a necessidade psicológica que se torna um obstáculo a casamentos estáveis.
No mesmo artigo, Popenoe refere-se à relutância em pelo menos parte do mundo académico em falar das transformações recentes da família nas sociedades ocidentais, na qual devemos incluir a irlandesa, como “declínio da família”. A principal razão apresentada por Popenoe para a estigmatização da expressão “declínio da família” ou “enfraquecimento da família” é o receio que alguns cientistas sociais têm em quebrar o compromisso da sua investigação com a causa igualdade entre homens e mulheres, atualmente designada por “igualdade de género”. Afinal de contas, a família nuclear tradicional, que registou o seu auge no baby boom do pós-II Guerra Mundial, principalmente nos EUA, era inseparável do patriarcado e da separação de esferas de atividade, o que inevitavelmente afastava as mulheres do mercado de trabalho. Por isto, o movimento feminista (de segunda via) não consegui evitar expressar o seu desdém pela família nuclear tradicional. Portanto, todas as formas de família alternativas a esta, que seriam, em princípio, mais igualitárias, veriam a sua dominância como bem-vindas por este movimento. Estas formas ou tipologias de família mais igualitárias acarretam um nível de independência económica das mulheres (casadas, solteiras ou divorciadas).
Este “enfraquecimento da família” ou “declínio da família”, continuando a seguir o raciocínio de Popenoe, é observável através do mapeamento das consequências sociais das transformações na família, pelo que jamais seria lógico em falarmos de uma simples mudança. Por um lado, as minorias e as mulheres, viram o seu estatuto e qualidade de vida melhorarem, através da participação na força de trabalho e de uma menor preocupação com as tarefas domésticas. Mais, a maior importância do fator psicológico na escolha de futuros parceiros para casamento pode levar a que os matrimónios durem mais pela constatação de que acabam por ser emocionalmente mais compensadores para as duas partes. Também não nos podemos esquecer de que as pessoas podem reinvidicar de maior dependência financeira relativamente aos seus familiares, no que toca aos cuidados de saúde e pagamento de rendas, por exemplo. Por outro lado, existem evidências de que as tendências apresentadas por Popenoe algumas páginas atrás no mesmo artigo tiveram efeitos negativos nas crianças, que representam “o futuro de uma sociedade” pelo qual as consequências para estes são “especialmente importantes”.
A feminização do mercado de trabalho, ou seja, o afastamento das mulheres da esfera doméstica, levou ao desinvestimento generalizado no bem-estar das crianças (e dos jovens). Popenoe também menciona o progressivo “acto de desaparecimento dos pais em números elevados” por parte dos homens, que passa pela negligência da parentalidade, a recusa do compromisso com as obrigações parentais e a falta de presença nas casas. É um “déficit de pais”, tanto da parte das mulheres como da parte dos homens.
É irónico que o governo irlandês tenha escolhido o Dia Internacional das Mulheres para chamar os eleitores a um referendo baseado neste tema. O resultado final não parece ter respondido positivamente a “the pathway of liberalism” (o caminho do liberalismo) reivindicado ou previsto por Leo Varadkar, o primeiro-ministro irlandês. Pelo menos ao liberalismo que este defende. Uma parte substancial dos irlandeses não se parece entusiasmar por alterações jurídicas e mudanças culturais que desvalorizem a atenção concedida aos espaços, esferas e grupos que lhes prestam mais cuidados, que os constroem mais pessoalmente, que lhes inculcam mais sentido de responsabilidade e ao qual devem mais respeito e carinho. Eles sabem que deitar ao lixo palavras como “família”, “casamento” e “proteção” tem consequências duradouras na forma como uma sociedade e uma nação inteira encaram a forma como devem viver e como vêm os seus membros mais frágeis. Assim, disseram aos governantes irlandeses, no Dia Internacional das Mulheres, que nem a Constituição nem os public policy makers devem ser neutrais quanto de trata de relacionar positivamente casamento com família. A constituição, ditaram os irlandeses, não ditará nem acompanhará nenhuma mudança cultural no sentido de relativizar a importância da família. As mulheres, os homens e as crianças parecem continuar a querer estar habituadas a um país com uma cultura que estimule a constituição e a sua participação numa família com um pai, uma mãe e filhos e em que o menor número de pessoas se sinta privado deste modelo de família.
Num próximo artigo falarei da outra questão que foi colocada no mesmo dia aos irlandeses.