O Big Brother chegou a Portugal em 2000, um ano após ter sido criado pelo holandês John de Mol, inspirado numa personagem do livro “1984” de George Orwell. O formato, no qual um grupo de pessoas fica fechado, durante meses, sobre o olhar e escrutínio do telespectador, tem, desde então, servido como gatilho das audiências da TVI.
Em 22 anos foram criadas inúmeras variações deste conceito assente no entretenimento emocional, na associação poderosa entre a vontade de aparecer e a curiosidade sobre a vida alheia. Com mais ou menos originalidade, as várias estações de televisão nacionais presentearam-nos com a casa do Toy, espantaram-nos com pessoas acorrentadas ou que desafiavam os seus limites numa ilha, no circo, na quinta, no meio de animais selvagens, na tropa, até aquelas que procuram o amor num carro ou numa herdade fictícia no Alentejo, sempre com uma câmara apontada. A lista é de tal forma extensa e mirabolante que quase temos saudades da honestidade das galinhas do Zé Maria.
Em paralelo com estes programas “da vida real” nasceram novas estrelas mediáticas que povoam a imprensa nacional com enredos dignos de ficção. O fenómeno ganha ainda mais consistência nas redes sociais, com milhares de seguidores e grupos de fans que, nem sempre conscientes, alimentam uma indústria poderosa e lucrativa. O sucesso é inegável e espantosamente longo. Mais de duas décadas e o produto vende mais do que água no deserto, ganha novos públicos, continua a atrair os mais jovens, quer como espectadores, quer como concorrentes, sem a ingenuidade de outrora, mas com o mesmo entusiasmo. De certa forma é admirável, mas até que ponto é positivo? Não conseguimos evoluir nada?
Mais surpreendente é vermos como este voyeurismo, assente em banalidades, invade outros domínios, que se esperavam sérios e credíveis. O elástico da falta de noção ultrapassa o entretenimento e chega ao horário nobre do jornalismo, que no mesmo espaço em que nos angustia com uma notícia sobre a guerra da Ucrânia e a reunião do Eurogrupo atira-nos com o drama dos moradores de um prédio em Sacavém que são fustigados com gazes e odores desagradáveis de uma lavandaria que se instalou no rés-do-chão. Isto tudo no mesmo patamar de gravidade e relevância que chega a confundir as prioridades do telespectador.
Mude de canal, não veja, vá à Gulbenkian ver um bailado, puxe de um livro, nunca tanto como hoje existiram alternativas, na realidade ninguém é obrigado a assistir. Argumento mais que válido. Mas onde fica a responsabilidade das estações de televisão generalistas e de canal aberto em formar e educar? Será que a promoção de comportamentos exacerbados, muitas vezes verbalmente violentos é o que realmente precisamos ao serão?
Para desenjoar arrisco-me mesmo a fazer uma analogia gastronómica. Quando abrimos uma lata de atum para desenrascar porque não temos tempo para melhor, não estamos propriamente à espera da melhor refeição do mundo, no entanto se o peixe for de qualidade, em azeite virgem e cozinhado com imaginação pode surpreender. Um enlatado não tem que ser um produto mau, mesmo que rápido e barato pode ser nobre. A televisão também.