Na semana passada falei aqui de uma batalha dramática. Dos derradeiros 70 dias de Vincent van Gogh em Auvers-sur-Oise e da triste ironia da sua vida. Ironia em vida – apoteose na morte. É que apesar do negro manto que cobria o seu espírito derrotado e assombrado, «La tristesse durerait toujours», conforme confessou ao seu irmão Theo no momento da sua morte, as misteriosas rodas do destino haviam já começado a rodar. E rodarão ainda mais a favor da sua glória graças ao apoio incondicional de uma mulher – Jo.  É precisamente esta parte da história, solar e radiosa, que gostaria agora de contar. O que acontece à obra de um artista após a sua morte? É aqui que começa esse misterioso jogo de dados do destino. Também é aqui que se cruza a criação artística com a preservação da memória de alguém que já não existe, que se torna numa sombra. Essa espécie de combate à entropia natural que separa as coisas vivas das mortas.

Este tema convoca obrigatoriamente o nome de duas mulheres extraordinárias: Johanna van Gogh-Bonger, cunhada do pobre Vincent; e Lucie Pecetto, mulher do desafortunado Amadeo de Souza-Cardoso. Falar de Jo e de Lucie é falar precisamente do combate contra a desmemória, mas sobretudo, do amor incondicional. As duas foram essenciais para a preservação e consolidação da memória artística de dois gigantes da história da pintura europeia e esta é uma parte da sua história muito discreta e pouco contada. Comecemos por Johanna, reservando para Lucie uma segunda crónica.

É um mito que Vincent van Gogh não tenha vendido um único quadro em vida. A 19 de Fevereiro de 1890 recebeu do seu irmão a notícia de que a sua Vinha Encarnada havia sido vendida por 400 francos na exposição Les XX que decorreu em Bruxelas. Mas quando chegou a 20 de Maio desse mesmo ano a Auvers, a sua percepção era a de que a sua vida havia fracassado: «Je sens que c’est là le sort que j’accepte, et qui ne changera plus» [lenta dança da morte clarificada no maravilhoso filme de Maurice Pialat, Van Gogh]. O seu talento havia sido reconhecido por alguns amigos artistas, caso de Émile Bernard e de Paul Gauguin, mas para além de uma parca troca de elogios e de obras, tal não havia afectado a sua reputação no mundo artístico. Desde 1888 que as suas obras se encontravam visíveis, ainda que de forma discreta, no apartamento do seu irmão Theo em Paris, e na loja do vendedor de materiais de pintura Julien Tanguy. Nada mais… Em 1889, antes da sua morte, portanto, o artista e jornalista holandês Joseph Jacob Isaäcson publicava um artigo em que elogiava já o caracter pioneiro da sua obra: «Vincent est destine à la postérité». Em Janeiro de 1890, o poeta e crítico Albert Aurier publicava um artigo intitulado «Les isolés. Vincent van Gogh». A roda do destino havia, de facto, sido posta em marcha algum tempo antes da sua morte, mas o artista não se apercebeu [o mesmo se passará com Nietzsche]. Depois do funeral, Theo levou as obras que restavam para Paris, e estas ficaram à guarda de Julien Tanguy, pois em casa já não havia espaço para mais. Fechou-se a porta e o destino da obra começou…

A 25 de Janeiro de 1891, seis meses após a morte do seu irmão, Theo morre numa clínica em Utrecht. Johanna, viúva e mãe de uma criança que ainda não tinha sequer um ano de idade, coloca-se na linha da frente e continua os esforços que Theo havia já envidado na promoção da vida e obra do seu irmão. A 20 de Março de 1891, Jo envia dez obras para o Salon des Indépendants. Estas não passarão despercebidas, sendo referidas em pelo menos sete artigos e numa primeira página do L’Echo de Paris. Em 1892, Jo transfere todas as obras em seu poder para Bussum, na Holanda, organizando no ano seguinte quatro exposições do seu cunhado na Holanda. Em Paris, por seu turno, Émile Bernard tenta organizar uma primeira exposição com as obras que se encontravam ainda na loja de Julien Tanguy, mas sem sucesso. Morre nesse mesmo ano. Em 1895, será o mítico marchand Ambroise Vollard a organizar pela primeira uma exposição de Van Gogh em Paris. O mito começa a tomar forma…

A grande obra da vida de Jo será, no entanto, a publicação das famosas cartas trocadas pelos dois irmãos ao longo da sua trágica vida. Dez meses após a morte de Theo, a 14 de Novembro de 1891, ela escreveria no seu diário: «Para além do meu filho, Theo deixou-me outra tarefa – a obra de Vincent (…) agora vou começar com as cartas antes do Verão». Em Janeiro de 1914, estas seriam finalmente publicadas parcialmente em francês e em holandês. No prefácio da primeira edição, Jo relata o seu primeiro encontro com esta entidade epistolar: «Quando, como jovem esposa de Theo, entrei em Abril de 1889 no nosso apartamento na Cité Pigalle, em Paris, encontrei no fundo de uma pequena escrivaninha uma gaveta cheia de cartas de Vincent e, semana após semana, vi os envelopes amarelos com essa caligrafia familiar a aumentar». Johanna cedo compreendeu que não se tratava de uma troca de correspondência banal, mas antes de um genuíno tratado de estética, de uma obra literária e poética, de um guia para a obra de Vincent, de uma colecção de esboços, de uma viagem à mente de um homem a enlouquecer, e sobretudo, de um hino à amizade, amor e fraternidade de dois seres ligados por laços inquebráveis. No seu todo, constituem um paradoxal roteiro de uma mente em decomposição, e simultaneamente, uma écfrase de tudo aquilo que o artista viu, sentiu e pintou. A sua leitura será certamente a melhor homenagem que poderemos concretizar, não apenas à fraternidade desses dois homens, mas ao amor e dedicação de uma grande mulher — Johanna van Gogh-Bonger.

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