Em pleno período de campanha eleitoral em Portugal torna-se por demais evidente a inexistência da cultura e das problemáticas a ela associada no debate público. À excepção do recente programa Contra-Corrente da rádio Observador, o silêncio é confrangedor. Deixou há muito de ser uma opinião – tornou-se um facto – a cultura em Portugal é indigente. É certo que num país em que questões vitais para o desenvolvimento e o bem estar físico e emocional constituem um desafio quotidiano, leia-se saúde e educação, o acesso a uma programação cultural de excelência torna-se absolutamente secundária. Mas será assim na realidade? Não constituirá o acesso à cultura uma condição básica para o desenvolvimento do ser? Mais, não será essa uma das características mais comuns dos ditos países desenvolvidos?

Quando falo aqui de cultura, não me refiro à condição universal que o termo encerra. De facto, se procurarmos a sua definição no dicionário, esta designação generalista é evidente: 1 – Totalidade dos costumes, das tradições, das crenças, dos padrões morais, das manifestações artísticas e intelectuais e de outras características que distinguem uma sociedade ou grupo social. 2 – Conjunto das características morais, intelectuais, artísticas e dos costumes ou tradições de um determinado povo, nação, lugar ou de um período específico. 3 – Conjunto das actividades e instituições relacionadas com a produção, criação e divulgação das artes e das ciências humanas (ex.: é preciso investir na cultura). Os dois primeiros pontos encerram uma complexidade muito particular, pois traduzem-se numa dimensão de difícil circunscrição – o conceito de Portugalidade. Eduardo Lourenço votou praticamente toda a sua genial obra à análise dessa questão.

A condição cultural que me interessa analisar aqui é precisamente a terceira, ou seja, a capacidade de produção, criação e divulgação das artes e das ciências humanas. Note-se que a expressão entre parêntesis é do próprio dicionário, apesar de constituir uma verdade incontornável. Será rentável investir em cultura? De facto, importa analisar a questão. Vejamos alguns exemplos europeus. O número total de visitantes culturais a Espanha em 2022 foi de cerca de 12 milhões. Se traduzirmos esse número pelas entradas dos três principais museus de Madrid, O Museu do Prado, o Museu Thyssen-Bornemisza e o Museu Reina Sofia, obtemos um número absolutamente astronómico. Em 2018 a cultura espanhola terá sido responsável por cerca de 3.6% do emprego total em Espanha.

O website da presidência espanhola do Conselho da União Europeia é claro a esse respeito. Desde logo por reconhecer que a cultura é um evidente elemento unificador da sociedade e um pilar fundamental para um futuro sustentável. Mas não se trata apenas de questões unificadoras. De facto, a cultura constitui um dos motores mais vigorosos para o desenvolvimento económico das sociedades.

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Quando olhamos para o quadro da cultura francesa a questão afirma-se plena e sem contradições. O website do ministério da cultura francesa revela que só no terceiro trimestre de 2022, as receitas da cultura aumentaram 2,6 mil milhões de euros. O total rondará uns obscenos 92 mil milhões de euros, tanto como a indústria agro-alimentar e a indústria automóvel. E vemos protestos ou tractores nos museus franceses? Evidentemente que não. Apenas uma cordata e civilizada contemplação.

Posto isto, importa questionar: a cultura deverá ser considerada enquanto gasto ou como investimento? De facto, quando bem gerida, é um gasto que se traduz em investimento. A cultura não é gratuita, como é evidente, mas possui o potencial de se traduzir em riqueza.

Portugal encontra-se, como é óbvio, totalmente na periferia deste fenómeno. Quem quiser fruir de exposições imperdíveis como as que estiveram agora em Paris, caso de Van Gogh no Musée d’Orsay, de Mark Rothko na Fundação Louis Vuitton ou de Le Paris de la Modernité no Petit Palais, tem que obrigatoriamente calçar os sapatos e seguir europa adentro.

O panorama nacional é tão deprimente como a 12 de Dezembro de 1916 aquando da exposição de Amadeo de Souza Cardoso na Liga Naval de Lisboa. Almada Negreiros revoltar-se-ia contra aquilo que designou, à época, por “fúria de incompetência”: «Amadeo de Souza Cardozo é a primeira Descoberta de Portugal na Europa no século XX. O limite da descoberta é infinito porque o sentido da Descoberta muda de substância e cresce em interesse ⎯ por isso que a Descoberta do Caminho Marítimo prá Índia é menos importante que a Exposição de Amadeo de Souza Cardozo na Liga Naval de Lisboa». Será que essa malfadada fúria de incompetência persiste? Receio muito que esteja pior. Mais, completamente desfasada da realidade cultural europeia.

Infelizmente essa malfadada fúria de incompetência fez escola e persiste. Mais do que incompetência, deu lugar a uma dimensão onde o absoluto ridículo assumiu as rédeas. A 25 de Junho de 2007, aquando da inauguração do Museu Colecção Berardo de Arte Moderna e Contemporânea, em Lisboa, o primeiro-ministro da altura, José Sócrates, quando questionado se esperava que Portugal entrasse na rota da arte moderna e contemporânea europeia, respondeu o seguinte: «Eu não disse que espero. Eu disse que tenho a certeza! Porque antes do dia de hoje (sic), o roteiro da arte contemporânea parava em Madrid. Não passava por Portugal. Agora começa em Lisboa…». O tom provinciano revelava apenas uma realidade incontornável – o desconhecimento absoluto da realidade artística e museológica europeia.

Dezassete anos depois esse vazio persiste… Abrimos mão do nosso património. O recente caso da “Descida da Cruz” de Domingos Sequeira é o exemplo perfeito da absoluta indigência com que a cultura é encarada. Também a rota internacional das grandes exposições passa ao largo. Por cá já só aportam exposições imersivas. Bonitas, mas banais… Desprovidas certamente daquilo que Walter Benjamin designava por «Aura», ou seja, a unicidade, a autenticidade e a experiência que só a contemplação de uma obra de arte original produz.  Não temos outra opção senão seguir os conselhos do mestre Almada: « Não esperes, porém, que os quadros venham ter contigo, não! Eles têm um prego atrás a prendê-los. Tu é que irás ter com eles. Isto leva 30 dias, 2 meses, 1 ano, mas, se tem prazo, vale a pena seres persistente porque depois saberás também onde está a felicidade».