Um galaró. Terá sido certamente a primeira imagem que Lucie Pecetto tirou do jovem português que acabava de entrar na crèmerie do Boulevard Montaparnasse. A jovem Lucie teria cerca de dezassete ou dezoito anos. Filha do proprietário, era muito bonita, tímida e falava português. É Domingos Rebelo quem nos descreve este encontro ocorrido em 1908. Amadeo de Souza-Cardoso entrava na crèmerie «com a sua indumentária exótica – chapéu à Masantini, capa à espanhola, atirada sobre o ombro, deixando aparecer o veludo vermelho da gola; calça à boca-de-sino, polainas claras sobre um sapato castanho, luvas brancas». Um galaró… Ao que tudo indica, terá sido amor à primeira vista. Diversas fotografias e cartas comprovam este enorme amor e cumplicidade que culminaria com o seu casamento, no Porto, em Setembro de 1914.

No culminar da sua breve existência de trinta anos, Amadeo conseguirá estabelecer um delicado e improvável equilíbrio. Um equilíbrio entre a ruralidade latente das suas memórias de Manhufe e o cosmopolitismo radical da Paris do início do século XX. De permeio, entre estas duas realidades antagónicas, ficará Lisboa. Em 1905, ainda sem Orpheu, a atmosfera da capital não o seduz. No seu entender, o provincianismo lisboeta é adequado para «conselheiros, pelintras – e para todos os outros mariolas». Para jovens como ele, que cultivavam ilusões sagradas como ideais, «Lisboa serve apenas para estragá-los. Lisboa é um símbolo, o resumo da torpeza nacional: aos que não corrompe, enoja-os». Amadeo parte em 1906 para Paris. Abençoada decisão.

Largada a tacanhez alfacinha, a explosão será inevitável. Na capital parisiense vivem-se os anos primordiais do modernismo. Tudo é possível, porque tudo está em transformação: arte; cultura; sociedade; tecnologia; moda; costumes; moralidade. Uma ebulição existencial. Para o jovem Amadeo será uma experiência de morte e renascimento. De si, dirá alguns anos depois: «Eu não pertenço a nenhuma escola. As escolas morreram. Nós, os novos, só procuramos agora a originalidade. Eu sou impressionista, cubista, futurista, abstraccionista? De tudo um pouco». Para este percurso contarão, sobretudo, duas forças centrípetas distintas, as amizades e um génio inequívoco. Entre os portugueses residentes, fará amizade com Domingos Rebelo, Eduardo Viana, Manuel Bentes e Emmerico Nunes, cúmplices frequentes das suas recriações fotográficas. Mas o jovem Amadeo será reconhecido também por aqueles que, à época, edificavam o modernismo enquanto estrutura. Constantin Brancusi, Alexander Archipenko, o seu querido amigo Amedeo Modigliani, e alguém que havia já começado a viver a sua própria lenda, Pablo Picasso e o seu fiel escudeiro, Guillaume Apollinaire. Com todos debatia alegremente no Café de la Rotonde, no Dôme, no Select ou no mítico La Coupole, a dois passos da crèmerie da sua amada Lucie…

O seu percurso será um inevitável fogo-fátuo. Mas ainda assim, que fogo! Em 1911 expõe no seu atelier juntamente com Modigliani. Picasso, Apollinaire, Max Jacob e André Derain marcarão presença. Início auspicioso com a bênção do principal papa da modernidade. Em Abril do mesmo ano participa no 27º Salon des Indépendents. Repetirá a façanha no ano seguinte. Seguir-se-ão, em 1913, uma exposição conjunta com Picasso, Braque, entre outros, na galeria Miethke em Viena. Nesse mesmo ano, expõe oito obras no mítico Armory Show em Nova Iorque, Chicago e Boston. Em 1914 ainda participa no London Salon of the Allied Artists. Um sucesso fulgente que num ápice se extingue, prova amarga do cinismo que é a existência.

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A explosão de 1906 dá lugar à implosão de 1914. Tudo pára. Tudo retrocede. Amadeo é apanhado na curva e regressa, juntamente com a sua amada Lucie, à terra das suas memórias campestres, Manhufe. E aí tudo abranda. Instala-se na vida o ritmo próprio dos ciclos rurais. O ciclo do sol e da lua. É o exílio. Em Amadeo, Vicente Alves do Ó ilustra de um modo particularmente poético o paroxismo deste sufoco. Depois da vertigem de Montparnasse, o tempo rústico soará a condenação apenas interrompida pelos breves contactos com Robert e Sonia Delaunay, também eles exilados em Vila do Conde. Depois da guerra virá a gripe espanhola, e com ela, a morte precoce de Amadeo. Capítulo encerrado, pois, os caixões não têm gavetas e Amadeo nada leva consigo. Com a sua morte, morre também a sua carreira. O pano cai em 1918 e Amadeo desaparece numa dobra da memória…

Do lado de cá ficam a sua obra e a sua amada Lucie. Apesar de discreta, nestes últimos parágrafos ela esteve sempre ao seu lado. E ao seu lado permanecerá pelo resto da vida. Lucie Pecetto Souza Cardoso, será, à semelhança de Johanna van Gogh-Bonger com o pobre Vincent, responsável pela manutenção da memória do seu amado Amadeo. Notável combate das duas contra a entropia. Dois anos após a morte de Amadeo, Lucie regressa a Paris com intuito de reunir toda a sua obra. Tanto aquela que Amadeo deixara para trás, como parte da que o pintor produziu em Manhufe nesses derradeiros anos de exílio forçado. Em 1921, Lucie tenta concretizar a exposição que Amadeo tanto ambicionava em Nova Iorque. Quatro anos mais tarde realiza uma primeira retrospectiva do artista na Galeria Briant-Robert em Paris, com algum reconhecimento da crítica. A ressurreição de Amadeo não será como a de Lázaro. Levará décadas. Lucie dará apenas o primeiro impulso. Lentamente, a sua obra inscreve-se como um capítulo antecipatório de vanguardas futuras. Quem serias tu, Amadeo, se não tivesses sucumbido precocemente aos trinta anos? Poderias ser algo de distinto, mas com Lucie sempre ao teu lado.

Lucie será a guardiã da obra do seu amado. A sua acção será vital para que o corpus da pintura de Amadeo tenha permanecido. Em toda a sua vida, Lucie venderá apenas seis obras: uma a Jean Cassou, exposta actualmente no Centro Pompidou, e outras cinco à Fundação Calouste Gulbenkian, a quem doará também todo o espólio documental do artista. A morte que não conseguira ceifá-la no distante ano de 1918, apanha-a finalmente em 1989. No seu rosto, esboçava-se decerto o sorriso do reencontro.