O Mundial no Catar está rodeado de polémicas e controvérsias desde o momento em que foi anunciado pela FIFA, em 2010. Corrupção, ilegalidades e mortes de trabalhadores foram dos temas mais comentados sobre o campeonato nos últimos anos.

Mais recentemente, a polémica recaiu também sobre qual seria o posicionamento dos jogadores, das seleções e dos chefes de Estado frente às violações aos direitos humanos, características do país, e proibições absurdas impostas pela organização do Mundial, tendo como base o regime autoritário em que vivem. Portugal, por exemplo, vai estar bastante representado politicamente, o que gerou muita crítica ao governo.

No entanto, não é de longe a primeira vez que o maior campeonato de futebol é sediado por um país com regimes totalitários. O último Mundial, na Rússia, aconteceu durante a “pior crise de direitos humanos no país desde os tempos soviéticos” (até então, como é óbvio), segundo a Human Rights Watch. Na década de 70, a Argentina, sob uma dura ditadura militar, recebeu o campeonato, ainda que fosse viável trocar o local. Há quase noventa anos, a Itália do fascista de Mussolini negociou fortemente com a FIFA e também celebrou a vitória do país, tendo sido a taça entregue pelo próprio ditador. Em 2017, a FIFA adotou oficialmente uma política de direitos humanos, mas parece que continua a não passar muito de um documento com pouco efeito.

Líderes da entidade organizadora já admitiram anteriormente que “democracia demais” pode dificultar a organização do campeonato num país. Além disso, parece que há um interesse em especial de tais regimes de demonstrarem poder e tentarem incutir uma perceção positiva ao mundo, ao serem anfitriões do evento desportivo.

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Quem diz que não se deve misturar futebol e política certamente ainda não percebeu que a FIFA e os campeonatos, no geral, estão completamente envolvidos em política, da cabeça aos pés. E os campos sempre foram espaços de manifestação, não só no Mundial.

Mas então… se não têm poder de influência sobre as principais decisões relativas à organização dos campeonatos, qual será o papel dos jogadores, para além da performance nos jogos, no meio disso tudo?

Exemplos não faltam – e que bom – de jogadores que exercem a sua cidadania e usam o seu lugar de privilégio para fazer o bem fora dos jogos. O argentino Messi ajuda a milhares de crianças através da Fundación Leo Messi. O mais novo ídolo do Brasil, Richarlison, arrecadou dinheiro para a Ciência, criou instituto que apoia famílias em tratamentos de cancro e doou milhões para uma ONG ambiental. A mais premiada, Marta, também já participou de várias campanhas sociais, é uma voz ativa sobre a igualdade de género no desporto e foi nomeada embaixadora da ONU. São pessoas que inspiram e que representam na vida os valores do desporto.

Nos campos, também é possível exercer cidadania. Primeiro, com uma ética de jogo adequada, mas, também, com manifestações públicas sobre temas sociais. A Liga da Europa deste ano, por exemplo, foi marcada por pedidos de fim à guerra na Ucrânia. Nas Olimpíadas em 2021, cinco seleções do futebol feminino fizeram gestos de protesto antirracista. No atual Mundial, desde os primeiros jogos, têm sido destacadas atitudes de protesto, como a da seleção alemã, que posou para a foto “silenciada”, após terem sido praticamente proibidos de usar acessório que representava a defesa dos direitos LGBTQIAP+, ou a do Irão, que se recusou a cantar o hino nacional face às violações de direitos humanos que ocorrem no regime autocrático de seu país e a da Dinamarca, que cobriu o símbolo da sua Federação, supostamente como protesto pelo campeonato ser no Catar, entre outros líderes e jogadores que demonstraram de alguma forma o seu descontentamento em relação às problemáticas deste Mundial.

É certo que, uma revolta “de verdade”, com maiores consequências, poderia incluir a recusa das seleções em participarem no campeonato, porém, o facto de participarem e se manifestarem também é relevante. Com a espetacularização da prática desportiva (tema para outro texto), a Copa do Mundo mobiliza milhões de apoiadores e a atenção de toda a comunicação social e estas manifestações não passam despercebidas, pelo contrário.

Antes de ocuparem uma posição na equipa e serem figuras públicas, futebolistas são, primeiro, cidadãos e cidadãs e fazem muito bem em transmitir ao público o apoio a questões sociais que afligem a sociedade. O desporto é, sim, político, e tem um papel fundamental na construção social e da cidadania – e é algo positivo ter futebolistas a relembrar-nos a todos disso.

Maria Fernanda Santos Souza é brasileira, mestra em Educação e Literacia Física, foi co-fundadora dos Global Shapers em São Luís, no Brasil, e assumiu cargos de liderança na ONG global AIESEC durante quatro anos. Atualmente trabalha pela integração de pessoas refugiadas e migrantes em Lisboa. É Alumni da Teach For Portugal e do programa de empreendedores do governo dos Estados Unidos, Young Leaders of the Americas Initiative. Já viveu em três países e considera-se uma cidadã global.

O Observador associa-se aos Global Shapers Lisbon, comunidade do Fórum Económico Mundial para, semanalmente, discutir um tópico relevante da política nacional visto pelos olhos de um destes jovens líderes da sociedade portuguesa. O artigo representa, portanto, a opinião pessoal do autor enquadrada nos valores da Comunidade dos Global Shapers, ainda que de forma não vinculativa.