É sempre duro e estranhamente surpreendente vermos partir alguém de quem gostamos, por mais velho seja, por mais natural que seja a morte ou por maior que seja a nossa fé numa vida plena, para além desta.

Juan Velarde Fuertes morreu em Fevereiro deste ano; mas no final de 2022 também tinham já morrido outros dois bons amigos: o Frank Shakespeare, a 14 de Dezembro, e a Nélida Piñon, a 17.

O Frank foi embaixador dos Estados Unidos em Portugal e na Santa Sé e estive com ele na Heritage Foundation. Era um velho e querido amigo, com quem passei muito tempo nos anos finais da Guerra Fria, em Lisboa, em Roma, em Washington, em Nova Iorque. E partilhámos, ao longo dos anos, dias e dias de conversa e de lazer no Verão americano, em Greenwich, Connecticut, em casa da nossa amiga comum Silvia Maria Mello Franco Nabuco, “Vivi” Nabuco, neta de Joaquim Nabuco, brasileiro do mundo político e grande paladino da abolição da escravatura, em 1888. Frank teve uma vida cheia, até que, aos 97 anos, Deus o veio buscar.

Três dias depois de Frank Shakespeare ter partido, morreu aqui em Lisboa outra grande amiga – Nélida Piñon, a primeira mulher presidente da Academia Brasileira de Letras. A Nélida era uma mulher muito especial, com quem estávamos, a Zezinha e eu, sempre que íamos ao Rio ou que ela vinha a Lisboa. Depois de a Zezinha morrer, continuei a dar-me muito com ela e trouxe-a para o meu círculo próximo de amizades. Mas também jantávamos muitas vezes sozinhos, no Solar dos Presuntos ou no Gambrinus, os restaurantes de que a Nélida mais gostava. Tinha uma sensibilidade epidérmica, uma inteligência viva e um grande sentido de humor. Nada lhe escapava. Morreu aqui em Lisboa, num sábado, estava eu a caminho de Pamplona. O seu livro mais conhecido é a República dos Sonhos, uma saga familiar migratória, mas aquele de que mais gostei e gosto chama-se Vozes do Deserto, uma recriação das Mil e Uma Noites de uma perspectiva feminina.

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Uma expedição singular

Juan Velarde Fuertes morreu no dia 3 de Fevereiro, em Madrid. Era Presidente da Real Academia de Ciencias Morales y Politicas de Madrid, de que sou sócio correspondente, por seu convite.

Conheci-o no Outono-Inverno de 1986, numa expedição singular à América do Sul, ou, mais propriamente, ao Chile de Pinochet. O regime estava então a estabelecer as regras do seu próprio termo e de um processo de transição que se concluiria com a saída de Pinochet em Março de 1990, dezassete anos depois do golpe militar de Setembro de 1973 que derrubara o presidente Allende. Era um dos pouquíssimos regimes ditatoriais a fazer a passagem e Gonzalo Fernández de la Mora, autor de O Crepúsculo das Ideologias e meu amigo dos tempos de exílio madrileno, de 1976-1978, organizou uma série conferências em Santiago do Chile sobre “a transição de regimes autoritários para democracias.”

Foi aí, nesse Verão Austral, nos últimos anos do regime militar chileno, que conheci Juan Velarde Fuertes.

Poucas semanas antes da nossa viagem para Santiago, um grupo terrorista de extrema esquerda, inspirado pelo Partido Comunista chileno, a Frente Patriótica Manuel Rodriguez, atentara contra Pinochet, quando o ditador viajava da sua casa de campo para Santiago, com o neto de dez anos. Cinco escoltas morreram no ataque e onze ficaram feridos, mas Pinochet, o neto e o motorista, que seguiam num carro blindado, escaparam, com ferimentos ligeiros.

Passámos uma semana em Santiago, e destas expedições de grupos pequenos ficam sempre amizades mais fundas, ditadas por afinidades electivas. Juan Velarde e eu fazíamos quase vinte anos de diferença mas como, sendo pessoas de convicções e lealdades não éramos propriamente sectários, olhávamos com algum humor os que o eram e divertíamo-nos com isso. Lembro-me, por exemplo, de um inglês, antigo comunista das Brigadas Internacionais convertido à direita tatcheriana, que queria que os serviços de Sua Majestade mandassem cartas-bomba para os “financiadores americanos” do IRA. E Velarde, furioso, comentava: “Este es de derechas, no como un inglés conservador, sino como un coronel guatemalteco de la Coca.”

Nesse mesmo encontro, num jantar na Messe da Marinha, a convite de um oficial submarinista, quando perguntei se Pinochet se voltaria a apresentar a eleições, ouvimos de um contra-Almirante:

“Veamos si el Almirante Merino lo permite! Porque, sabes, Jaime, Pinochet es un hombre muy liberal, casi un demócrata!”

Depois desses dias no Chile, passámos a conhecer-nos e a encontrar-nos com frequência em Madrid, onde eu o visitava no seu despacho no Tribunal de Contas e conversávamos naqueles longos almoços madrilenos, que acabam depois das 5 da tarde.

Juan Velarde Fuertes nasceu em 26 de Junho de 1927, em Salas, uma povoação conhecida como “porta ocidental” das Astúrias, e a sua expedição pela vida foi também singular.

As primeiras memórias que tinha, dizia-me, eram da revolta dos mineiros em Outubro de 1934 e da passagem por ali do general Lopez Ochoa, enviado pelo governo para a controlar. Como era da tradição anti-clerical da esquerda peninsular – bem mais pacata do lado de cá do que do lado de lá – trinta e quatro religiosos tinham sido então assassinados. Tudo se passara na semana sangrenta, com 58 igrejas e conventos incendiados. Com sete anos, Juan, que era de família católica, lembrava-se das preocupações dos mais velhos naqueles dias que seriam o sinal de abertura de um conflito que viria a dividir e a ensanguentar a Espanha.

Na guerra civil, Juan não tinha ainda idade para combater; mas o seu sentimento e o seu pensamento não iam nem para o radicalismo socialista e anarquista, responsáveis pela maioria dos assassinatos contra os católicos, nem para a reacção nacional-conservadora do franquismo.

Com o fim da guerra e a derrota do Eixo, Franco procurou desligar-se dos elementos ideológicos e pessoais que pudessem aproximá-lo do totalitarismo fascista. Ora o falangismo joséantoniano era o modo espanhol do fascismo. Entretanto, a Guerra Fria e a prioridade para os Estados Unidos de alianças anticomunistas tornavam o regime espanhol um aliado objectivo de Washington; e, em Setembro de 1953, viriam os acordos para as bases militares americanas.

Era um alinhamento claro, em que convergiam as várias famílias e clientelas do Regime. Mas, ideologicamente, havia fracturas, sobretudo entre o justicialismo joséantoniano – antimonopolista, anti-latifundiário e intervencionista – e as correntes vindas do integrismo católico, com os intelectuais tributários da Accion Espanhola, alguns depois ligados ao Opus Dei.

Em 1953, Juan Velarde, que era falangista e economista, liderou um grupo que tomou conta da secção de Economia do diário Arriba e da Revista de Economia Política, do Instituto de Estudios Políticos. A reforma tributária iria opor a corrente mais liberal, apoiada pelos patrões, ao sector falangista que, nas palavras de Velarde, queria actuar através dos impostos “para resolver o problema da distribuição da renda nacional espanhola”. O grupo por ele liderado vinha do curso de 1947, o primeiro curso de licenciados pela Faculdade de Ciências Políticas e Económicas da Universidade Central. Henrique Fuentes Quintana, mais tarde ministro da Economia na transição pós-franquista, fazia parte do grupo.

A táctica deste grupo era combater os problemas da sociedade espanhola do pós-guerra e as suas profundas disparidades sociais numa linha justicialista e keynesiana. Partiam do pensamento social de José António e eram influenciados por Keynes e por Beveridge, directamente e através de Manuel Torres, um valenciano catedrático de Teoria Económica.

“Hay alguno entre vosotros que se haia asomado a las tierras de España e crea que no hace falta una reforma agraria?”, perguntara José António. E Fuentes Quintana denunciava depois as “oligarquias económico-privadas” do carvão, da electricidade, do cimento e do aço, ligadas ao sistema bancário, à semelhança de um outro nacionalista radical citado por Velarde, Ramiro Ledesma, revolucionário de direita fuzilado pelos Rojos em 36.

Os artigos do grupo, de todos eles – incluindo de Juan Velarde – eram claramente anticapitalistas e alguns seriam interditados pela Censura, então dirigida pelo nacional-católico Gabriel Arias Salgado.

Havia uma velha relação entre o autoritarismo reformista e nacionalista de um Bismarck e as preocupações sociais do “socialismo catedrático” alemão; e os pressupostos do intervencionismo keynesiano, ainda que num quadro liberal, democrático, competitivo, aproximavam-se do falangismo ou do corporativismo fascista.

Falangista, católico e liberal

Temos assim, nos anos 50, um Juan Velarde na convergência do falangismo joséantoniano e dos dirigismos e intervencionismos democráticos de “Terceira-via” de tipo keynesiano. Estes intervencionismos de Terceira-via tinham, por outro lado, uma forte componente doutrinal e histórica baseada no chamado catolicismo social, escola vinda da reacção católica conservadora ao marxismo, com homens como Albert de Mun, e confirmada pela Rerum Novarum, de Leão XIII. A Rerum Novarum fora uma resposta ao socialismo cientista e materialista, mas também uma resposta dura ao capitalismo, parecendo até alinhar na tese catastrofista dos marxistas: o abismo crescente entre uns poucos (cada vez menos) donos de tudo, e uns muitos (cada vez mais) sem quase nada. Isto numa altura em que se estavam a criar na Europa as classes médias e em que a economia como ciência avançava no campo da microeconomia.

Juan Velarde reflectiu sobre todos estes problemas num texto de 7 de Junho de 2021: San Juan Pablo II y los problemas de la economia; um texto que é também uma reflexão sobre a evolução do seu pensamento ao longo de 60 anos.

Para Velarde, São João Paulo II, em Centesimus Annus (no centenário da Rerum Novarum), teria feito a coisa certa: uma síntese e uma convergência do pensamento da Igreja com a ciência da economia e a experiência das coisas velhas e novas. Nesse mesmo artigo, na revista Omnes, Velarde contava que o Papa convidara para o Vaticano, para o aconselharem, prémios Nobel, como Kenneth Arrow (1972) e Amartya Sen, e um núcleo de reputados professores europeus, americanos e japoneses. O próprio João Paulo II participara animadamente nos debates preparatórios, sublinhando que “o subdesenvolvimento vinha tanto da precariedade dos direitos civis como dos erros económicos”.

Lembrava então Velarde que a nova Encíclica vinha, pela primeira vez naquele século, considerar a possibilidade de um “capitalismo bom”; um sistema económico que reconhecia “o papel fundamental e positivo do comércio, do mercado e da propriedade privada” e da “criatividade humana livre no sector económico”. Para Juan, esse “bom capitalismo” podia ser aquilo a que os economistas alemães tinham chamado “economia social de mercado”.

Assim o Velarde falangista dos anos 50, o católico denunciador da “raposa capitalista” dos anos 60, em choque com os ministros capitalistas liberais católicos de Carrero Blanco, reconhecia, com João Paulo II, que nem todo o capitalismo era mau.

Era um “falangista liberal”. Talvez fosse uma contradição nos termos, mas ele era assim, único. Tendo conhecido bem Juan Velarde, e a sua curiosidade e a sua admiração pela inteligência do argumento e pela liberdade do pensamento, não me choca aceitar que alguém pudesse, partindo de princípios de transcendência e de uma ordem sociopolítica ditada pelo Bem Comum e pela Justiça, admirar e aceitar, sucessivamente, o romantismo justicialista de José António e os postulados analíticos de Walras e Pareto. Sobretudo alguém irrepetível como Velarde, um sábio bom e justo que, por detrás dos seus óculos de lentes grossas, olhava o mundo com sabedoria e abertura; firme, mas pronto a espantar-se e a ser surpreendido. Era também alguém que punha o valor e a competência científica acima das questões ideológicas e que apoiou o comunista Ramon Tamames e os socialistas Santiago Roldán e Juan Muñoz na carreira universitária, defendendo-os do regime. Sim, era um falangista liberal, sobretudo se por “liberal” entendermos alguém que pratica e ama a Liberdade. Por isto e por tudo, faz cá muita falta.