Em Fevereiro deste ano escrevi um artigo intitulado A Insustentável Pobreza do Ser. Confesso o tom negativo do habitual queixume em torno da falta de investimento na cultura em Portugal. É um facto. Não vale a pena escamotear. Assumamos a questão com frontalidade e com vontade de minorar as consequências de uma realidade incontornável. Portugal é um país pobre e com fraco empenho na divulgação e promoção cultural. Solução? Assumirmos a nossa condição de europeus privilegiados e partir em busca das revelações que o norte nos oferece. Nós temos sol, mar, belíssimas paisagens e uma gastronomia de excelência. Óptimo! No norte não temos sol, mas encontramos civilização, arte, cultura e exposições imperdíveis. Óptimo! A troca parece-me mais do que compensadora. É sempre bom partir com o conforto terno do regresso. Vale sempre a pena repetir a célebre frase do Mestre Almada Negreiros acerca da exposição de Amadeo na Liga Naval em 1916: « Não esperes (…) que os quadros venham ter contigo, não! Eles têm um prego atrás a prendê-los. Tu é que irás ter com eles. (…) vale a pena seres persistente porque depois saberás também onde está a felicidade ».

Assim sendo, partamos em direcção à felicidade e à nova temporada de exposições que Paris nos reserva este Outono. Uma das mais notáveis será precisamente aquela que inaugurou no Centre Pompidou no passado dia 4 de Setembro: Le surréalisme : L’exposition du centenaire. Prestes a encerrar para umas prolongadas obras, o Centre Pompidou oferece-nos uma oportunidade única de mergulhar num dos mais extraordinários movimentos artísticos da primeira metade do século XX – o surrealismo. A celebração do centenário da publicação do manifesto surrealista em 1924 pelo «Papa» do movimento, André Breton, dará o mote. Organizada em torno do manuscrito original, a exposição encontra-se organizada em 14 capítulos evocativos de figuras inspiradoras do movimento: Lautréamont, Lewis Carrol, Sade, etc. Associando pintura, desenhos, filmes, fotografias, objectos e documentos, esta exposição narra a génese e obsolescência de um movimento que pretendeu ir muito mais além da arte e implementar uma verdadeira revolução social, cultural e artística.

Enquanto movimento o surrealismo não nasceu de um vazio prévio. Contrapondo a psicanálise a uma arte abstracta que transformava tendencialmente a pintura em geometria, os surrealistas procuraram no inconsciente e no onírico a fórmula de libertação dos impulsos espontâneos. Será, porém, o movimento Dada a dar-lhe corpo e inspiração formal. Fundado em 1914 por Tristan Tzara no célebre Cabaret Voltaire, em Zurique, o movimento Dada chegaria a Paris em 1919. A recém-criada revista Littérature, que reunia em torno de Aragon e Breton escritores como fargue, Gide e Valéry, será palco da entrada do movimento que provocará escândalo na edição de Janeiro de 1920. Breton fará parte do núcleo duro do movimento em Paris, participando nas sessões Dada e publicando, em 1921, o célebre Les Champs Magnétiques, primeiro texto «automático», considerado posteriormente, como o texto seminal do movimento surrealista. Esse ano seria marcado ainda pela divergência de Breton com o Dadaísmo por considerar que o movimento deveria ser mais ofensivo, menos difuso, e mais eficaz, na prática dos escândalos públicos. Em Junho de 1924 será publicado o último número de Littérature marcando assim a desagregação definitiva do movimento Dada. No dia 1 Dezembro desse mesmo ano será lançada a revista La Révolution Surréaliste, «A revista mais escandalosa do mundo», marcando assim o início oficial do Surrealismo. Nesse mesmo ano, Breton publicará o primeiro Manifesto do movimento (o segundo será publicado em 1929, marcando o início das notáveis purgas que Breton imporá ao movimento). Estava assim lançada a revolução surrealista, que cedo demais se assumirá não apenas enquanto revolução cultural, mas também enquanto revolução política. Em 1934 Breton assumirá abertamente o posicionamento político do movimento: «Transformar o mundo, disse Marx; mudar a vida, disse Rimbaud. Para nós, estas palavras de ordem são uma e a mesma coisa». Através da revista Le Surréalisme au Service de la Révolution (L.S.A.S.D.L.R.) Breton tentará conciliar a liberdade de criação poética e moral com o combate revolucionário, na ilusão de que estes dois princípios aparentemente antagónicos, o individualismo e o “espírito do partido”, fossem conciliáveis. Em 1934, Idanov aplicará o conceito de arte enquanto arma política lançando o “realismo socialista”. Será o início da era estalinista e o fim das grandes ilusões. Traídos por uma revolução que deveria ser «estritamente social», os surrealistas retiram-se do plano político para o mitológico fundando a revista Minotaure. O ano de 1939 será marcado pelo êxodo de inúmeros artistas. Fugirão da guerra em direcção aos Estados Unidos levando consigo o embrião da futura Escola de Nova Iorque. Motherwell, Gorky, Baziotes, Rothko e Pollock serão influenciados pelas obras de Max Ernst, Masson e Tanguy expostas na célebre galeria de Peggy Guggenheim Art of this Century. Mas esta será uma história a contar a pretexto de outra exposição…

Os quadros presentes no Centre Pompidou e que terão um prego atrás a prendê-los serão de Salvador Dalí, de René Magritte de Giorgio de Chirico, de Max Ernst, de Joan Miró, entre tantos outros. Mas também de mulheres que constituíram um papel fulcral no desenvolvimento do movimento, caso de Leonora Carrington, Remedios Varo, Ithell Colquhoun, Dora Maar, Dorothea Tanning, Tatsuo Ikeda, Helen Lundeberg, Wilhelm Freddie e Rufino Tamayo. Uma exposição imperdível e obrigatória!

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