1É comum invocar-se, a propósito da legalização da eutanásia, o perigo de a experiência enveredar por uma rampa deslizante, uma vez entrada em vigor a pertinente lei. Na experiência portuguesa manifesta-se a seguinte peculiaridade: a rampa deslizante começou a operar ainda antes da entrada em vigor da lei.
O primeiro texto proposto a lei (Decreto da Assembleia da República n.º 109/XIV) manifestava o ensejo de legalizar o que se pode dizer eutanásia em sentido estrito, ou seja, a eutanásia reservada aos doentes terminais. Certo é que, já então, se previa a relevante excepção dos enfermados por lesão definitiva de gravidade extrema: um conceito que, se estava destinado a servir de limite, parece mais apto a acomodar como razão da morte toda e qualquer deficiência, desde que exista a correspondente vontade do aplicador.
Atendendo, porém, à delimitação da primeira categoria de beneficiários, ou vítimas, do diploma, compreende-se que se pudesse falar de uma antecipação da morte, pois estaria em causa antecipar um desfecho expectável a breve termo – mas não tão breve que se não pudesse poupar ao doente, na visão dos eutanasistas, uns dias ou semanas de sofrimento, como gostam de dizer, «inútil».
Mas, depois, como que encorajados pelo primeiro Acórdão do Tribunal Constitucional versando o assunto, o qual, embora declarando a inconstitucionalidade do diploma, afirmou a compatibilidade de princípio da legalização da eutanásia com a Constituição [1], os deputados propuseram já com o segundo e terceiro textos (respectivamente: Decreto da Assembleia da República n.º 199/XIV e n.º 23/XV) legalizar a eutanásia em sentido lato, ou seja, incluindo para os doentes cuja morte não estava à vista. Na verdade, mais: a partir do terceiro Decreto a mudança de eixo revelou-se tão drástica que a categoria de doentes que, no primeiro Decreto da Assembleia da República, seria o destinatário prioritário da legalização (a par dos da lesão definitiva), foi parcialmente excluída, com a exigência, insólita, de que a eutanásia não poderia ser praticada antes de decorridos dois meses do início do procedimento (artigo 4.º, n.º 5, do Decreto da Assembleia da República n.º 23/XV, e, agora, da Lei n.º 22/2023, de 25 de Maio). Ou seja: os doentes que, esgotadas as esperanças terapêuticas, tenham a morte à distância de poucas semanas, ou mesmo poucos dias, não podem beneficiar, ou ser vitimados, pela eutanásia que mereceria a exculpação da lei, deixando-os, segundo as altas concepções dos eutanasistas sobre a vida, morte e o sofrimento, a debater-se com uma caminhada arrastada para o túmulo, carregando a cruz de um sofrimento «inútil».
Só aos doentes com uma expectativa de vida mais larga – meses; porventura: anos – pode o médico induzir a morte sem temor da persecução da lei. Deixou-se de ter, pois, uma eutanásia confinada ao doente terminal, e passou-se a ter uma eutanásia franqueada ao doente crónico.
2Outra das singularidades que caracterizam a lei ainda em vigor é a deslocação do suicídio assistido para método principal de morte e da eutanásia para recurso subsidiário, a empregar só se o requerente não se mostrar capaz de executar o gesto último.
Não encerra segredo a razão desta inovação, que caminha em contrário ao que foi o projecto original dos promotores da lei: trata-se de acolher, oportunisticamente, a sugestão feita por alguns Conselheiros do Tribunal Constitucional no último Acórdão elaborado sobre a matéria [2]. Não há dúvida de que a concessão não corresponde ao desiderato original dos feitores da lei; mas também não há dúvida de que foi tida como necessária para lhe garantir, durante os primeiros tempos de vigência, e enquanto subsistir a presente composição do Tribunal Constitucional, uma maior robustez no confronto com a fiscalização da constitucionalidade.
No entanto, a elevação do suicídio assistido a recurso principal constitui uma contrariedade ao espírito que preside ao modelo de legalização da morte a pedido. Esta afirmação começa a ser aclarada se se considera a experiência neerlandesa – que tanta influência repercutiu sobre as experiências europeias posteriores. Constata-se que, em contexto em que é permitido ao requerente escolher entre a eutanásia e o suicídio assistido, a eutanásia goza de uma supremacia esmagadora sobre o suicídio assistido. No ano de 2022, por exemplo, a categoria do suicídio assistido compreendeu somente 2.1% de todos os casos notificados de morte a pedido [3]. Não é um retrato peculiar a 2022: repete-se ali consistentemente, ano após ano, desde que se compilam registos desta natureza [4].
Alguns Conselheiros do Tribunal Constitucional sugeriram que o suicídio assistido deveria merecer prioridade entre os métodos de morte, porque, ao infligir-se a morte por mão própria, se garantiria, além de toda a dúvida, que o acto é querido pelo requerente [5]. Esta precaução, uma vez formulada, parece gozar de certa evidência; contudo, está viciada de um alheamento perante a feição empírica da questão. Desde logo porque, mesmo com recurso primário ao suicídio assistido, existe uma probabilidade elevada de a morte vir a ser, de facto, provocada pelo médico: as estatísticas dos Países Baixos registam uma porção elevada de situações em que a morte não se segue, como esperado, à ingestão de veneno pelo paciente, e o médico tem de intervir para terminar a sua agonia [6].
Depois, mais fundamentalmente, porque o argumento radica numa incompreensão radical da natureza filosófica – se se quiser: psicológica – do procedimento conducente à morte, como arquitectado no modelo do Benelux e importado, nos seus estágios fundamentais, para a nossa ordem jurídica. A larga prevalência da eutanásia sobre o suicídio assistido nos Países Baixos é o desfecho coerente de um processo que fabrica a desresponsabilização do requerente, mediante a externalização do empreendimento suicida; de um processo destinado a baixar, para certas categorias de sujeitos, os custos morais e psicológicos do suicídio, através da garantia de cooperação e da assunção de responsabilidade por um terceiro: o médico. A eutanásia, como configurada no modelo Benelux e no nosso, é um fenómeno de paternalismo médico [7]: não é tanto a afirmação de uma autonomia heróica, como frequentemente se idealiza, quanto um processo de cooperação para suprir as fraquezas de uma vontade que se ajuíza como fraca para o suicídio desajudado, com a sua face artesanal e grosseira, ou tão só vacilante ante o terror instintivo da morte; mas que, apoiada por aquelas facilidades e por aqueles incentivos, é conduzida ao que, como parece pressupor o legislador, é a melhor decisão.
A circunstância de o requerente por sua mão ingerir o veneno letal não altera a natureza deste processo. É certo que impor esta última ou única barreira, exigir esta derradeira prova de vontade, pode ser o bastante para demover muitos de executar o intento. No entanto, a assunção pelo poder médico do projecto suicida encontrar-se-á, nesse momento, cumprida na maior parte. O diagnóstico e, sobretudo, o prognóstico – na verdade, o todo da comunicação médica – em que operam, talvez inevitavelmente, racionalidades estranhas à objectividade que presumimos na ciência, aliados ao discurso que idealiza uma morte profissional e científica, são determinantes para originar, ou fortalecer, a vontade de morrer. Não surpreendentemente, a pesquisa de ten Have e Welie nos Países Baixos concluiu que a posição favorável ou desfavorável à eutanásia do médico envolvido parece ser determinante na decisão do requerente: alguns médicos reforçam o desejo dos seus pacientes de procurar a morte, enquanto outros os conduzem à procura de outras vias [8].
A eutanásia, ou seja, o homicídio a pedido, é o culminar lógico deste processo de abdicação de responsabilidade no médico e na técnica, que facilita psicologicamente a escolha da morte. A imposição de o que o requerente teça o gesto derradeiro não emenda uma situação em que a sua autonomia será, sempre, mais aparente do que operante.
3Toda esta errância, e esta sanha de, à primeira oportunidade alargar e, mesmo, redefinir incoerentemente o escopo da legalização, são precedentes que não permitem formar dúvida de que o que parece importar aos promotores é, de qualquer maneira, fazer introduzir a lei. O propósito é criar uma brecha; esta tenderá depois, inexoravelmente, a expandir-se – como eles bem sabem. O furor progressista, que é também a crença silente num certo determinismo histórico, liquidou todas as reservas e desconsiderou todos os perigos. Talvez seja o momento, pois, de substituir a ponderação e gravidade a esta mística obscurantista do progressismo. Talvez, em resultado, haja que, indolor e eficazmente, matar a lei.
[1] Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 123/2021.
[2] Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 5/2023.
[3] Regional Euthanasia Review Committees, Annual Report 2022, p. 9.
[4] Por exemplo: 2.5% em 2021; 3.1% em 2020; 3,9% em 2019; 3,4% em 2018: 3,8% em 2017. Todos estes números se encontram nos respectivos relatórios anuais dos Comités Regionais que supervisionam a aplicação da eutanásia e do suicídio assistido no país.
[5] Consultem-se, nomeadamente, as declarações de voto dos Conselheiros Gonçalo de Almeida Ribeiro e Afonso Patrão, juntas ao mencionado Acórdão n.º 5/2023.
[6] O número destes casos correspondeu a, aproximadamente, 18% do número de suicídios assistidos praticados em 2022, nos Países Baixos. Cf. Annual Report 2022, p. 6.
[7] Resumindo a história da introdução da eutanásia na ordem jurídica neerlandesa e concluindo que, desde os primórdios, a mesma foi centrada no paternalismo beneficente do médico e não na autonomia do doente, cf. Helen Weyers, The Legalization of Euthanasia in the Netherlands: Revolutionary Normality, em: Stuart J. Youngner, Gerrit K. Kimsma (editores), Physician-assisted death in perspective: assessing the Dutch experience, Cambridge University Press, 2012, p. 49.
[8] Henk ten Have; Jos Wellie, Death and Medical Power: An Ethical Analysis of Dutch Euthanasia Practice, Open University Press, 2005, p. 78-79.