No último programa “Conversas em Família”, transmitido em Março de 1974, o então presidente do Conselho, Marcello Caetano, já confrontado com a revolta das Caldas e um regime em colapso, respondeu às acusações de que controlava a imprensa com a frase que cito: “Nada, porém, do que de verdadeiro se passa e ao público interessa, deixa de ser trazido ao conhecimento dele”. Na visão do ditador, o Estado chama a si o direito de analisar a informação, aferir se esta é verdadeira, aferir se é do interesse público e então divulgar ou não.

A censura é típica de uma ditadura e, por isso, bem se justifica que nos orgulhemos do oposto: a liberdade de imprensa, que deve caracterizar a democracia em que vivemos.

A este propósito, não me recordo de ler editoriais revoltados quando a União Europeia proibiu, em 2022, as emissões da Rússia TV e de outros canais russos no espaço europeu. Nem editoriais dramáticos nem ninguém se queixou. A maior parte das pessoas nem notou que a Rússia TV desapareceu do cabo.

A Comissão Europeia entendeu que os canais em causa transmitiam propaganda do Kremlin na sequência da bárbara invasão da Ucrânia e que, incapazes de ter uma análise crítica do que lhes é apresentado, os espectadores europeus precisavam de ser protegidos pelo cancelamento de tais canais.

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Esta orientação da Comissão Europeia foi alargada, a 17 de Maio de 2024, ao cancelamento dos meios Voice of Europe, RIA Novosti, Izvestia e Rossiyskaya Gazeta. Em comunicado, o Conselho Europeu afirmava “Estes meios de comunicação estão sob controlo permanente, direto ou indireto, dos dirigentes da Federação da Rússia e têm sido essenciais e instrumentais pelo destaque e pelo apoio dados à agressão da Rússia contra a Ucrânia”.

Novamente, ninguém se levantou. Passou, sem tumulto, a ideia de que, continuando a ser incapazes de ter uma visão crítica sobre o que lhes é apresentado, os europeus precisam que a Comissão ou o Conselho Europeu proíbam meios de comunicação que não transmitam aquilo que estas entidades entendem como sendo verdade.

Semanas depois, o Kremlin retaliou, proibindo a transmissão ou venda em papel de quase uma centena de meios de comunicação social de toda a União Europeia, nos quais se incluem o Le Monde, o Der Spiegel, o El País e, entre nós, a RTP, o Público e o Observador, que nos habituamos a ver/ler como referências.

Agora sim, editoriais revoltados pela censura praticada pelos Russos, etc e tal.

Pergunta-se: mas o Observador ou a RTP não operam evidentemente com mais liberdade do que um qualquer dos media russos agora banidos? Sim, sem dúvida alguma. E isso justifica que se dê ao Estado o direito de os proibir?

A propósito, alguém acredita que o Portugal Socialista, o Povo Livre ou o Folha Nacional, respectivamente jornais do PS, PSD e do Chega, publicam uma visão imparcial da realidade? Seria também de os proibir?

O problema da censura na imprensa é que é uma rampa inclinada. Quando admitimos dar a uma entidade ou governo o direito de decidir o que é que é adequado para lermos, ele começará por proibir algo que seja consensual – a censura do bem –, e depois avançará para censurar tudo o que entenda. A distância entre o que fez a União Europeia e a confissão de Marcello Caetano, não é, afinal, assim tão grande.

Veja-se um outro exemplo que nos tocou a todos, o COVID. À data, o colégio de pediatria da Ordem dos Médicos emitiu dois pareceres contrários à vacinação generalizada de crianças e jovens. O então Bastonário da Ordem dos Médicos não divulgou estes pareceres. Só quando o Tribunal Administrativo de Lisboa, já em Fevereiro de 2024, o deliberou, é que a Ordem se viu na obrigação de divulgar tais pareceres.

E recordamos o recente exemplo na nossa Assembleia da República quando André Ventura afirmou que os Turcos não são conhecidos por serem trabalhadores, e logo se insurgiram os chalupas da censura a exigir que ele fosse punido e esse tipo de discurso cancelado. Bem, o Presidente da AR explicou o valor da liberdade de expressão e o estatuto de liberdade que deve vigorar no parlamento, mesmo que esta liberdade seja usada, como foi o caso, para dizer algo que não faz sentido nenhum. Aliás, a liberdade de expressão não existe para que se afirme aquilo com que nós concordamos: existe, precisamente, para o oposto.

No mesmo sentido, Úrsula Von der Leyen e a nossa ministra Margarida Balseiro Lopes ensaiam medidas e propostas para combater aquilo que definem como discurso de ódio. E quem definirá no dia a dia o que é um discurso de ódio? A este propósito, quando a deputada Mariana Mortágua afirma que os portugueses são culpados pelo racismo sistémico (ao que leio até fomos nós que inventámos o racismo), isto não é discurso de ódio?

Então como combater estas notícias falsas, este discurso de ódio? Salvo casos em que seja chamada a responsabilidade criminal, como o crime de difamação, devem ser combatidos com boa informação, de robusta credibilidade. O Izvestia pode escrever vinte vezes que Putin é um líder carinhoso, mas eu confiarei mais no que ler acerca dele no Observador. O André Ventura pode afirmar que os Turcos são preguiçosos, mas a realidade que me passa pelos olhos desmente isso sem hesitar.

O que eu esperava, quando a UE determinou o cancelamento dos media russos, era que os nossos jornalistas afirmassem em voz alta que aquelas publicações não tinham credibilidade, mas que a sua censura era inadmissível.

O 25 de Abril carece de menos discursos, certamente menos cerimónias do croquete, e mais que a liberdade seja vivida e não temida. Podes voltar Rússia TV. Nunca te vi, nem tenciono, mas exijo que emitas livremente.

Nota editorial: Os pontos de vista expressos pelos autores dos artigos publicados nesta coluna poderão não ser subscritos na íntegra pela totalidade dos membros da Oficina da Liberdade e não reflectem necessariamente uma posição da Oficina da Liberdade sobre os temas tratados. Apesar de terem uma maneira comum de ver o Estado, que querem pequeno, e o mundo, que querem livre, os membros da Oficina da Liberdade e os seus autores convidados nem sempre concordam, porém, na melhor forma de lá chegar.