A crise na acessibilidade à habitação em Lisboa não pára de se agravar e parece absolutamente claro que nem Governo da República (agora em gestão) nem a Câmara Municipal de Lisboa estão a conseguir contribuir para a sua mitigação e, muito menos, para a sua resolução. Isto significa que – como sempre – terão que ser os cidadãos, os particulares e as empresas a organizarem-se para fazerem sair os nossos governantes e políticos eleitos (locais e nacionais) do seu torpor e a tomarem medidas urgentes e decisivas que possa contribuir para o desatar deste imenso Nó Górdio.
Não somos os únicos:
Portugal não é único país europeu com uma crise na Habitação mas é, certamente, um daqueles em que a situação é mais grave. Comparemos, por exemplo, Lisboa com Berlim: Em Berlim o salário mínimo é de cerca 2 mil euros mas a média de arrendamento urbano ronda os 1300 euros. Em Lisboa o salário mínimo é 820 euros (desde janeiro) mas a média de arrendamentos é igual à de Berlim! Isto é absurdo e completamente insustentável se queremos acessibilidade à habitação em Lisboa.
Não é de ontem:
Sabemos também que a crise da habitação em Lisboa não começou no ano passado. Mas o aumento da imigração e dos nómadas digitais aceleraram e agravaram um problema que já vinha de trás e que vai continuar enquanto não existirem estímulos suficientes à construção, reabilitação, arrendamento e as milhares de casas desviadas para o turismo via Alojamento Local não regressarem ao uso habitacional.
Os Seis Cavaleiros do Apocalipse Habitacional:
Sabemos há muito que grandes problemas da habitação em Lisboa são, por ordem:
1. Excesso de Alojamento Local (mais de vinte mil em 2023)
2. Pressão provocada pelos expatriados e nómadas digitais
3. Falta de construção pública
4. Procura criada pela concentração da imigração em Lisboa (frequentemente em casas partilhadas e em condições sub-humanas devido à ganância de alguns senhorios)
5 e 6. Em Lisboa, um dos grandes obstáculo à construção e aumento de oferta habitacional é a burocracia e a ineficiência do Sistema de Justiça. Se para construir ou reabilitar é necessário pagar e esperar pela resolução de vinte ou mais processos diferentes, pela decisão e acção de vários funcionários públicos e camarários, como se pode agilizar a construção de nova oferta e, consequentemente, pressionar para baixo os preços da habitação?
Devolutos: para que servem?
O facto de existirem em Lisboa, em 2022, 1063 imóveis totalmente devolutos (num total de 55 mil edifícios) e, para além destes, mais 1583 prédios parcialmente devolutos o que corresponde a, aproximadamente, de 48 mil casas vazias onde podiam viver pessoas temos — todos — que aceitar que a urgente reutilização destes imóveis daria um contributo decisivo para resolver o problema da falta de habitação e revitalizar as áreas urbanas. O aumento, radical, do IMI para estas casas e a efectiva (que não acontece) aplicação da legislação existente poderia ser um factor decisivo no regresso destas casas ao mercado habitacional e, pelo aumento da oferta, contribuir para a racionalização dos preços.
Não defendo (como alguns radicais à extrema esquerda) o confisco, por meios “duros”, de casas vazias mas, pelo contrário, que os proprietários das casas devolutas sejam conduzidos a devolverem essas casas ao uso habitacional por meios “suaves”: Através da redução dos tempos absurdos que a Justiça leva a resolver disputas entre herdeiros ou processos de despejo (criando tribunais especializados) e, sobretudo, através da criação linhas de crédito generosas que financiem a reabilitação urbana para arrendamento assim como a redução radical da fiscalidade sobre o arrendamento de casas anteriormente devolutas.
A ligação populista à imigração:
É também possível pressentir e sentir uma certa animosidade latente, entre muitos lisboetas contra os estrangeiros: nómadas digitais e imigrantes em geral: uns e outros, na prática servem de bodes expiatórios para um problema do qual, de facto, não são responsáveis directos mas indirectos. Não há dúvidas de que são um factor na crise da habitação na cidade. Mas reduzir o problema a uma única variável nesta equação tão complexa é populismo e, embora possa servir os interesses eleitorais de certos extremistas não é o cerne do problema. Mas se não devemos atribuir todas as responsabilidades a este afluxo migratório, também não o devemos escamotear. Os nómadas digitais e o aumento da imigração são os factores recentes que vieram agravar a crise habitacional. É certo que alguns afirmam que – sem estas pessoas – a economia da cidade se iria ressentir. É verdade que a imigração que trabalha na hotelaria e no turismo contribuiu para a rentabilidade de muitas empresas mas também pressionou para baixo os salários. Por outro lado, é duvidoso que os nómadas digitais contribuam efectivamente para a criação de riqueza e valor em Lisboa: o dinamismo económico que, supostamente, geram, e que deveria dividir a riqueza criada pela comunidade, de facto, quase não existe já que o valor criado fica nas empresas internacionais para quem trabalham as quais, por sua vez, pagam impostos fora de Portugal. O efeito da sua presença em Lisboa é mais na inflação dos preços do comércio e restauração nos bairros onde vivem e, sobretudo, nos preços da habitação até níveis incomportáveis para a maioria dos lisboetas. Geram alguns empregos mal remunerados e desqualificados na hotelaria, é certo, mas esses novos trabalhadores são aqueles que são obrigados a partilharem casas pagando rendas clandestinas e absurdas e que são mais um factor de inflação para os preços da habitação.
A imigração e os Nómadas Digitais:
Não tenho dúvidas de que o aumento da imigração em Lisboa (qualificada ou sem qualificações: com altos e com baixo salários e em casas partilhadas) é um factor de pressão nos preços da habitação. Mas sejamos claros: a narrativa da Direita Populista e da Extrema Direita que defende a pura e simples dos “expulsão” dos imigrantes é impraticável, imoral e incompatível num Estado de Direito e numa sociedade avançada. A sociedade anterior a 2018 nunca mais vai voltar. Esqueçam isso. Há pessoas que investiram as suas poupanças de uma vida para viverem em Portugal e nómadas digitais que, com salários internacionais, escolheram Lisboa pelo seu clima, preços de contexto e segurança e que, a menos que os preços da habitação prossigam a sua louca espiral até um ponto em que se tornam impossíveis (até para eles) não irão partir. A solução para a crise na habitação não é expulsar os imigrantes, mas construir e reabilitar. Ontem.
Turistificação:
Lisboa sempre foi uma cidade turística. Mas actualmente, este sector começa a aproximar-se das características das economias agrícolas de monocultura: antes de grande boom do Turismo na capital que começou com a Expo 98, se intensificou em 2001 e explodiu nos últimos anos os portugueses conviviam bem com os turistas e estrangeiros mas quando vemos que, p.ex, no Algarve 80% de todas casas são compradas por estrangeiros, que 90% dos investimentos dos Vistos Gold o são em imobiliário e que os estrangeiros compram, em média, casas de 414 mil euros (mais caras em 95% que os residentes) e, muitas vezes num reduzido número de bairros: isto perturbar o tecido social da cidade e repele ainda mais lisboetas da cidade. Recordemos que muitos empregos qualificados apenas existem em Lisboa e que não são compatíveis com regimes de teletrabalho.
Os nómadas digitais e o aumento da desigualdade de rendimentos em Lisboa:
Em Portugal estima-se que mais de 50% dos trabalhadores recebem salários inferiores a 1000 euros em 2022. O valor é ligeiramente inferior em Lisboa e o mesmo sucede com o rendimento da classe média que ronda os 1500 euros mensais. Os níveis mais altos e ainda estatisticamente relevantes rondam os 3 mil euros significam que – antes do afluxo dos nómadas digitais – já existia um grande nível de desigualdade de rendimentos. Mas se agora tempos uma nova camada com salários médios de 5 mil euros estamos perante um aumento dessa desigualdade. E que essa disparidade contribui para a inflação de preços na economia local.
Lisboa: Cidade europeia com salários não norte-europeus:
Lisboa é uma cidade europeia, de fronteiras abertas dentro do Acordo de Schengen e sujeita – por muitas e boas razões – a grande procura internacional. Tudo indica que assim continuará, com aumentos de preços, sobretudo nos segmentos de luxo e nas zonas ditas de “Premium”. Se nada de decisivo for feito pelo Governo local de Lisboa e pelo Governo da República, Lisboa será cada vez mais uma cidade inacessível à classe trabalhadora e à classe média que não tinha tido a sorte de herdar uma casa na cidade. A cidade será assim cada vez menos “portuguesa” e mais uma Disneylândia de turismo de massas, de expatriados norte-americanos e europeus entremeados nas zonas mais pobres por imigrantes explorados em casas sobrelotadas, com arrendamentos clandestinos e em condições subhumanas.
Casas Partilhadas:
É cada vez mais comum ver em Lisboa (e até nos arredores como Amadora ou Queluz) pessoas (não somente imigrantes) partilhando casas com outras ou até famílias (2 ou 3) partilhando em arrendamento o mesmo apartamento T2 ou T3: quase sempre sem recibos de vencimento nem um contrato legalmente registado e permitindo a fuga ao fisco por parte destes senhorios. Não é incomum termos conhecimento de apartamentos partilhados por 5 ou mais pessoas pagando, cada uma, entre 600 a 800 euros cada (sem recibo). Além de degradar a qualidade de vida destas pessoas e famílias, é imoral e viola a segurança das habitações e um razoável número de regulamentos municipais. Nada contra a partilha de casas mas, a partir de certo limite, é desumano e exige uma fiscalização eficiente por parte da Autoridade Tributária e das Autarquias Locais. Que não está a acontecer.
A “via rápida” do Alojamento Local (AL):
A solução mais rápida para o problema da habitação é, claramente, o regresso à habitação das mais de 20 mil casas desviadas para o Alojamento Local nos últimos anos.
Um Acórdão recente do Supremo Tribunal de Justiça e que visava responder à questão de saber se uma fracção, que no título de propriedade horizontal surge como de uso habitacional, poderia ser afectada a uma actividade económica como o alojamento local disse “não”.
A aplicação, contudo, depende dos proprietários dos condomínios e apesar de ter feito uma pesquisa, não encontrei nenhum caso em que um AL tivesse sido devolvido à habitação por causa deste acórdão. Todos os interessados têm que se envolver e mobilizar para tornar prática esta decisão do Supremo.
Lisboa: a cidade que se evapora:
Nas últimas décadas Lisboa perdeu mais de 300 mil habitantes. Durante o mesmo período de tempo, houve muita reabilitação urbana (muita da qual, infelizmente, para AL), alguma construção nova (a maioria para os segmentos de luxo). Isto deveria ter aumentado a oferta. Mas não o fez porque a maioria da reabilitação e da construção ou foi desviada para AL ou para os segmentos de luxo. Falta em Lisboa mais habitação a preços controlados e o papel da Câmara Municipal pode, e deve, ser muito mais interventivo nesta frente da batalha contra a crise da acessibilidade na habitação.
Não acredito no controlo de rendas:
Quando o ditador Oliveira Salazar decidiu congelar as rendas em Lisboa (a partir de 1933 com reforço em 1948) isso criou condições para a degradação – durante décadas – do parque habitacional que só se resolveu (com todos os defeitos) com a liberalização do mercado e a turistificação da última década. De notar que ainda se encontram habitantes com contratos antigos que pagam €7/mês em zonas em que a renda de mercado seria mais de €1500/mês. Travar rendas é desincentivar a colocação de mais casas no mercado de arrendamento e só este pode (mais rapidamente que a aquisição) contribuir para o aumento rápido da oferta.
Os ordenados são o verdadeiro problema:
Se os preços da habitação são de nível europeu os nossos não o são: nem de perto. É claro que a falta de habitação pública a preços acessíveis para a classe média e de uma rede de transportes públicos rápida e eficiente são outra parte do problema mas esta flagrante desproporcionalidade entre rendimentos e custos habitacionais é, aqui, o verdadeiro problema, e um problema que não tem solução fácil já que as reformas dos residentes não habituais, dos vistos gold e dos nómadas digitais são 3 a 5 vezes maiores que os de um lisboeta “médio”. A presença de fundos de investimento que possuem milhares de casas como “investimento” (algumas das quais devolutas) aponta na direcção que é – num período transitório e urgente como o que vivemos – é preciso aplicar medidas protecionistas que contenham o investimento estrangeiro neste sector. Isso aliás já foi empreendido em muitos países.
Actualmente, 16 países europeus possuem alguma forma de controlo nos valores das rendas e os preços da habitação estão sob controlo em países como a Áustria, Dinamarca, França, Alemanha, Irlanda, Holanda e Suécia. É claro que o caso austríaco tem as suas especificidades que recuam ao período do pós-guerra e da sua reconstrução o que explica porque é que as rendas em Viena são mais baixas que as de Lisboa (com um salário médio 3 vezes superior): porque 70% das casas em Viena são arrendadas e cerca de 30% são propriedade do Estado. Por comparação, em Lisboa, apenas 5% é habitação pública (e a maioria desta pequena percentagem é social).
Algumas propostas:
Para reduzir os preços do arrendamento:
2. Proibir o AL: excepto para férias com residência no local.
3. Priorizar no processo de arrendamento pessoas oficialmente registadas em Portugal que pagam a totalidade dos impostos.
4. Limitar os preços de arrendamento nas áreas de grande procura.
5. Desenvolver e apoiar (mais) cooperativas no mercado de arrendamento.
Para aumentar a oferta de habitação:
1. O Estado deve gerir de forma eficiente os edifícios que possui.
2. Simplificar o processo de licenciamento de nova construção.
3. Desincentivar a compra de casas para investimento:
Penalizando a compra de segunda e terceira habitação através de tributação acrescida.
4. Melhorar a eficiência do sistema judicial através da agilização dos processos de despejo em casos de incumprimento do contrato de arrendamento.
5. Combater a especulação imobiliária pelo aumentar os impostos sobre habitações secundárias, AL e fundos de investimento imobiliário e utilizar o dinheiro assim arrecadado para financiar a construção de nova habitação pública criando um fundo especial que compre de fogos privados para criar mais rendas acessíveis.
Acredito, ainda, que é preciso:
1. Promover a reabilitação urbana através de incentivos à construção de habitação social e, sobretudo:
2. Apoiar as famílias com rendimentos baixos no acesso à habitação.
É minha convicção, igualmente, que a implementação destas medidas poderia contribuir de forma significativa para um mercado de habitação mais justo e acessível para todos os cidadãos Portugueses.