Não tenho a intenção de me substituir ao John Carpenter. Da mesma forma, não quer este artigo acusar ninguém de atuar fora da legalidade. Contudo, é de veículos que vou falar! Reconhecendo já a estranheza da coisa, vou abster-me completamente da discussão sobre os combustíveis do futuro e focar-me apenas num dos (aparentemente) muitos petróleos do século XXI. O que pode parecer contraditório, mas não é. Refiro-me aos dados, pessoais (sobretudo) e não pessoais.

Em 2019, a Mozilla Foundation, através do seu segmento “Privacy Not Included”, levou a cabo uma análise de alto nível sobre a forma como 25 das maiores marcas de carros (este não é um artigo jurídico, por isso enquadraremos as marcas nas empresas que as detêm) tratam os dados pessoais dos seus clientes (bem como qualquer utilizador dos seus veículos), pelos quais são responsáveis. O resultado revelou-se a melhor justificação possível para a decisão de avançar com a análise.

Através da quantidade quase absurda de sensores, câmaras e microfones incluídos nos veículos mais recentes, assim como através dos dispositivos que conectamos a esses mesmo veículos, por exemplo através de bluetooth – quem diria que os nossos telemóveis podiam ser agentes duplos?! – e das Apps associadas à utilização daqueles, é virtualmente ilimitada a quantidade e qualidade de dados que as marcas recolhem e armazenam ou podem armazenar. Uma marca americana e uma outra japonesa, reconhecem recolher dados sobre a “Atividade Sexual” dos titulares dos dados. No caso das marcas alemãs, uma delas recolhe dados demográficos – como idade e género – ou dados de condução – como travagens, piscas ou velocidade média – e uma outra incorpora a App Tik-Tok (um alegado pesadelo em si mesmo) como pré-definida na aquisição de um veículo.

O respeito pelo consentimento dos titulares dos dados é muito limitado, com uma marca japonesa a assumir, por exemplo, que ao ser passageiro num dos seus automóveis,qualquer pessoa se converte naquilo que designam por “Utilizador” e assim presume-se o seu consentimento quanto às Políticas de Privacidade. Ou seja, essa marca japonesa autoriza-se a si própria a tratar os dados de qualquer pessoa que utilize o veículo, independentemente de esta ter dado ou não o seu consentimento a esse tratamento. Bem sei que a análise foi conduzida do ponto de vista dos Estados Unidos e as regras relativamente à proteção de dados (sobretudo) pessoais são bastante diferentes na Europa. Mas o facto é que as marcas são globais e a importância pública que dão a essa proteção não nos deve tranquilizar, desde logo tendo em conta a parca seriedade com que abordam o direito à privacidade das pessoas e as consequências disso mesmo para as empresas. Convido qualquer um a abrir o site de duas ou três marcas aleatoriamente, abrir as Políticas de Privacidade e analisar as (imensas!!) semelhanças entre elas.

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Embora tudo isto coloque às empresas (e em menor grau, eventualmente, às pessoas singulares, sobretudo enquanto prestadores de serviços) desafios de conformidade com legislação de Cibersegurança e Proteção de Dados, o que me fez escrever este artigo está menos relacionado com a lei e mais com as pessoas e com uma discussão pública que me parece necessária para que a tecnologia continue, como até aqui, a servir-nos e que não seja utilizada para que os seus criadores passem (ou continuem), adivinharam, a servir-se de nós. Um bom exemplo disto mesmo é a história partilhada por Kenn Dahl, um cidadão Norte Americano que viu o prémio do seu seguro automóvel aumentar 21% de um ano para o outro com a justificação do agravamento do seu perfil de risco, fruto da partilha dos seus dados de condução pela empresa detentora da marca do seu veículo com a sua seguradora. Não houve qualquer acidente nem violação das regras de condução, mas o seu perfil de risco foi agravado de forma automática porque os padrões de travagem, distância de segurança, piscas, etc adotados pela Sr. Dahl não estiveram, naquele ano, de acordo com o que a seguradora julga ser prática com o menor risco.

Não me considero um fundamentalista anti-era digital, pelo contrário, e por isso mesmo não pretendo dar ao que escrevo um tom alarmista. Mas não entendo a existência de liberdade sem a devida informação, e nesse sentido, reiterando que não tenho a intenção de acusar ninguém de agir à margem da lei, julgo que estou em condições de criticar aquilo que considero ser uma manifesta falta de transparência das marcas de automóveis, quer quanto às contrapartidas atuais pelos desenvolvimentos que apresentam quer quanto ao caminho a trilhar.

O “Onde estamos?” não pode, naturalmente, ser moldado, mas o “Para onde vamos?” ainda vai a tempo. Não que tenha que o ser, mantenho-me limitado aos objetivos de passar a informação e incitar a discussão, mas creio que uma posição da Administração Pública – a CNPD foi tão lesta a responder à WorldCoin assim que apareceu na televisão – seria sempre positiva. A título de exemplo, nos Estados Unidos, o Senador Edward J. Markey (Democrata do Massachusetts), na sequência do referido relatório da Mozilla Foundation, e tendo por base as suas conclusões, pediu de forma oficial esclarecimentos a diversas marcas de automóveis.

As respostas das marcas de automóveis contactadas pelo Senador Markey foram as possíveis, reiterando as exigências de consentimento e a faculdade de o titular dos dados remover alguns serviços em caso de discordância com o tratamento de dados resultante da utilização desses mesmos serviços. Mesmo assim, e apesar de esclarecimentos terem sido prestados, as respostas não deixam de, em certa medida, agravar algumas das desconfiança iniciais – veja-se o caso da tecnologia BlueCruise da Ford, que analisa in loco traços faciais do condutor e atua em conformidade, mas, de acordo com a Ford, os dados analisados não são transferidos para o exterior do veículo!

Não creio que seja possível (e tenho sérias dúvidas que seja desejável) voltar à utilização de veículos sem direcção assistida ou fecho central. Da mesma forma, não creio que seja desejável (e tenho poucas dúvidas de que seria possível) avançar na tecnologia sem que os consumidores que dela beneficiam estejam perfeitamente cientes daquilo que dão à troca do benefício.