Todos os Estados, na sua identificação, procuram antecedentes que os amarrem à História – acontecimentos, populações ou heróis singulares que teriam sido o prenúncio de uma determinada entidade autónoma. Tal como as raízes das árvores crescem debaixo do solo antes que a planta rompa a terra e ganhe visibilidade, essas dinâmicas e individualidades anteriores ao Estado também o sustentam e alimentam. Ainda hoje, uma das expressões reconhecidas internacionalmente como sinónimo de “português” é “lusitano” ou a forma abreviada “luso”. Evoca-se, assim, um dos povos que habitavam a Península Ibérica antes da sua conquista pelo Império Romano.

Os lusitanos destacaram-se pela sua luta tenaz contra os invasores e a sua região era tão particular no seio peninsular, que os Romanos criaram a província da Lusitânia. Situavam-se na zona ocidental e montanhosa da Ibéria, a sul do rio Douro, e a província romana incorporava todo o actual território português a sul do Douro e, grosso modo, a actual província da Extremadura espanhola, área igualmente marcada por uma orografia enrugada.

Dentre os caudilhos que enfrentaram as legiões romanas, sobressaiu a figura de Viriato (181 a.C. – 139 a.C.), verdadeiro herói peninsular, com estátuas e nomes de ruas ou praças em diversas localidades portuguesas e espanholas. As duras campanhas empreendidas por Roma para dominar a Lusitânia, são peça incontornável em qualquer história das guerras romanas e o nome de Viriato é evocado por todos os especialistas da matéria. As guerras épicas e o caudilho invencível não são um mito ou uma construção patriótica, mas um conjunto de factos históricos indiscutíveis reconhecidos internacionalmente.

A primeira resenha histórica do país, inserida em Os Lusíadas (1572), já recua até aos lusitanos e narra os sucessos e o drama de Viriato, atraiçoado pelos seus próprios oficiais, como parte da História de Portugal. Em pleno Renascimento, muitos povos, mesmo que sujeitos a uma autoridade supranacional, desenvolveram textos e narrativas sobre a sua ancestralidade e Portugal, então já um Estado-nação, não fugiu à regra.

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No entanto, além de a filiação na antiga Lusitânia não assentar numa lenda imprecisa e exagerada, mas em factos ineludíveis que a historiografia relembra amiúde, a sua percepção pelos tutores do Estado português não foi forjada na época quinhentista, pois recuava aos alvores da independência.

Na sua tese de doutoramento, intitulada Da Lusitânia a Portugal. Concepções do espaço e do poder das raízes clássicas às tradições humanísticas, apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, Orlando Gama elencou um conjunto de citações em crónicas e outros textos dos séculos XI, XII e XIII que estabeleciam uma relação directa entre a antiga Lusitânia e os territórios da nova monarquia portuguesa (pp. 210-241). É interessante notar, que a acção militar de D. Afonso Henriques nos demonstra que também ele tinha consciência do conjunto das antigas terras lusitanas, na medida em que, no auge do seu poder, entre 1166 e 1169, chegou a ser senhor de Mérida, Cáceres e Trujillo, cidades que haviam integrado a Lusitânia dos Romanos. A partir do século XV, a associação da Lusitânia a Portugal seria consagrada no discurso político-diplomático da coroa e passaria, pouco depois para a literatura, logo com Gil Vicente que escreveu um Auto da Lusitânia, em 1531. A recompilação da Chronica Gothorum por frei António Brandão (1584-1637) levaria essa associação ao clímax ao referir o rei fundador como “viriatos christianus” e “primus Hercules lusitanus”.

O espírito da época em torno do nosso primeiro rei era muito favorável a este tipo de comparações, exaltando a sua grandeza, como bem ressalta do texto que figurava, em latim, no epitáfio do seu primeiro túmulo, onde foi sepultado, aquando da sua morte, em 1185. É José Mattoso, no final da sua biografia D. Afonso Henriques, que no-lo conta (pp. 373-374):

«Aqui jaz um outro Alexandre, ou outro Júlio César, guerreiro invencível, honra brilhante do orbe. Douto na arte de governar, alcançou tempos seguros, alternando a sucessão da paz e das armas. Quanto a religião de Cristo deve a este homem provam-no os reinos conquistados para o culto da fé. Alimentado pela doçura da mesma fé, cumulou, além das honras do reino, riquezas para os pobres infelizes. Que foi defensor da Cruz e protegido pela Cruz assinala-o a Cruz, formada de escudos, no seu próprio escudo. Ó Fama imortal, ainda que reserves para ti tempos longos, ninguém pode proclamar palavras dignas de seus méritos.»

Em 1520, o corpo do monarca e o do seu filho D. Sancho I foram trasladados por D. Manuel I para os túmulos actuais no altar-mor da Igreja de Santa Cruz, em Coimbra, e a sepultura original foi destruída. Ficaram os seus registos. E, voltando aos primórdios do reino e à herança lusitana, sopesando todas as referências citadas, a definição tão precoce desta ligação entre Portugal e o espaço da Lusitânia, que já
existia 1.300 anos antes da independência, ajuda decerto a compreender a viabilidade e a vitalidade da nação portuguesa, nos séculos subsequentes.

O texto foi alterado, em 31/8/2024, nos parágrafos finais, para indicação mais precisa das suas fontes históricas e do respetivo conteúdo