O que te difere de outra escolha? Que capacidades enumera? São perguntas comuns numa entrevista de emprego que estamos, mais ou menos, habituados a ouvir, e com medo de responder por parecem demasiado óbvias apesar de serem verdade. Alguns poderão achar que é imperativo que as perguntem, e outros que é só desnecessário. Mas já nos questionámos que é necessário questionar se nos questionamos?

Perguntamo-nos as vezes suficientes qual é o nosso papel agora e dantes? Sim, fazemos isso com a nossa própria vida – talvez não tanto como fazemos com a do próximo. Mas, fazemos isso enquanto um todo? Enquanto sociedade ou mesmo enquanto ser humano, um animal que se distinguiu dos restantes pela vontade, e capacidade, de retratar o seu percurso, as suas perdas e vitórias e de encaminhar percursos ainda não desenhados. Dantes lutávamos por isso, muitas vezes mais do que a própria luta que insistíamos em eternizar. Quase que nos pegávamos à outrora vida destabilizada para ganhar um chão no momento e ter mais um pial para garantir um espaço.

Costumávamos fazer isso com os pescadores e varinas que assentavam redes e comunidades, que dedicavam arraiais e respeitavam o mar que os alimentava mas que também os engolia. Nada era mais certo que a força bruta do mar e do destino, tal como era certo, até há pouco, não esquecermos quem somos, de onde viemos, e para quem estávamos a lutar.

Milhares entraram nesses batéis, nessas canoas, envergando uma cinta e um barrete preto em direção à escuridão da noite, da superstição e do medo. A única cor eram as mantas bordadas das mães que esburacadas aqueciam para sempre. Mas, envergavam também orgulho e uma felicidade antonímica que, acredito mesmo, não ser possível ter hoje.

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Esta era a realidade da minha família e agora distante é isso que me desperta as borboletas no estômago por voltar ao meu bairro e às minhas tradições. Porém, terei sempre um porto para onde voltar? Família sim, mas e a comunidade? E o bairro? São ruas nas quais já não há crianças e onde as relações entre vizinhos é praticamente inexistente. Certa é a noite e o dia, tal como era o mar e a noite. Lamento por este bairro que tanta gente alegre e corajosa tem, bruta no bom sentido da palavra, firme como um bote e filha da Natureza. Nada paga, nada compensa e nada substitui este sentimento de pertença a uma comunidade. Mas como seres humanos, que teimam em não confiar nos seus instintos, só percebemos isso quando nos afastamos e quando o porto já não é seguro.

Queimaram-se barcos porque novos mares se afiguravam para os jovens, estabeleceram-se novos horizontes e afastámo-nos da cidade, da vila, do bairro. Quando quisemos voltar já não havia quase e era tarde para salvar uma âncora já enferrujada. Felizmente está no sangue e bom filho a casa torna, ainda que sozinho, ainda que contra a maré e sem estar na moda. Remamos contra a maré mas quando a água entra no barco de nada vale tirá-la com baldes ou com as mãos, o melhor é salvar-se quem puder. Podia ser uma história triste se não existissem entidades cuja obrigação é lutar contra a maré, arranjar o barco e restaurá-lo.

Mas, terá assim a História tanto valor para algumas entidades que só metem o pé no barco quando a vaidade vem de vento em popa e quando o prato vem cheio? Confirma-se, a sociedade deixou de valorizar as suas raízes, apostou demasiado na lembrança física e não apontou as suas memórias, não as transmite e vai deixá-las secar até a última artéria não levar mais sangue aos braços, até os esteiros estarem completamente secos e cheios de carcaças. No espaço de dois dias morreram dois homens, um fisicamente e outro espiritualmente. De um ficarão para sempre as memórias, o respeito e o seu peso na comunidade, não morreu de verdade. De outro, o que nada fez para resgatar estas memórias, para apoiar um pilar da comunidade da cidade pela qual era responsável, para potenciar um sector e transmitir ensinamentos seculares. Este último abandonou o barco e deixou lá os companheiros. Morreu o cargo de um mas vive para sempre o respeito do outro.

Meu Montijo, cheio de doutores que vão atrás do vento, que abrem as velas apenas quando lhes mandam e que insistem que as nortadas são quentes. Montijo, com quem anda a comer chocos com a testa. Meu Montijo, tantas saudades tenho, mas tanto tens que me fazes fugir. Meu Montijo, terra de verdadeiros lobos do mar que nada temem, que estão no seu canto mas felizes e rijos. Meu Montijo, as tuas artérias estão a secar e ninguém faz nada te resgatar. Tanto tempo trabalhou o meu avô descalço para dar um teto aos filhos e aos netos e agora calçados não têm chão. Tanto tempo lutaram estes lobos do mar para os doutores terem ideologias em vez de ideias e ideais. Meu Montijo, alguém dê vida aos teus esteiros que estão abandonados há muito, alguém te salve da morte que te declararam. Meu Montijo, para ti volto sempre.

Ontem morreu um lobo do mar, outro. Ontem perdemos mais um pedaço de História vida no Montijo. Ontem o Montijo ficou mais pobre e perdeu quem o seu nome dignificou. Descanse em paz Francisco.