O mês de abril vai a meio e somos recordados da liberdade conquistada há 47 anos em Portugal. Ouvimos os relatos daqueles que, nascidos na primeira metade do século passado, têm presentes as melhoras que a Revolução de Abril conquistou.

Uma delas, sem dúvida, a Escola Pública e a defesa da oportunidade de ensino para todos, independentemente da etnia, classe ou sexo. A par disto, mantiveram-se outras oportunidades já existentes e previstas na legislação desde 1948, como o Ensino Doméstico e o Ensino Individual, garantindo o direito de oportunidade de ensino para todos, em formatos diversos. A escola pública foi criada para alargar e oferecer, não para se impor como modelo único. Por isso lemos no artigo 73º da Constituição: “O Estado promove a democratização da educação e as demais condições para que a educação, realizada através da escola e de outros meios formativos, contribua para a igualdade de oportunidades, a superação das desigualdades económicas, sociais e culturais, o desenvolvimento da personalidade e do espírito de tolerância, de compreensão mútua, de solidariedade e de responsabilidade”. Lemos, ainda, no art.º 2 da Lei de Bases do Sistema Educativo: “No acesso à educação e sua prática é garantido a todos os portugueses o respeito pelo princípio de aprender e ensinar, com tolerância para todas as escolhas possíveis (…) O Estado não pode atribuir-se o direito de programar a educação e a cultura segundo quaisquer diretrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas”. No artigo 43º, a alínea 1 diz que é “garantida a liberdade de aprender e ensinar”.

É com base nestes princípios que as famílias podem optar por inscrever os seus filhos em diferentes modalidades de ensino, ponderando qual o formato em que acreditam e que melhor se adequa, tomando para si a responsabilidade de educar com seriedade e com compromisso. Sei, em primeira mão, pela experiência de quem optou por esta modalidade há perto de uma década, da estranheza que é possível sentir quando se percebe que há crianças que não vão à escola todos os dias. Também eu senti, antes de ter a experiência. Por isso, gostaria de dar uma nota mais pessoal, do lado de quem vive a experiência e a defende como possível e válida.

Sei que a primeira questão que surge, inevitavelmente, é a questão da sociabilização. Como é que a criança se vai desenvolver e ganhar competências sociais se não está com outras crianças, os seus pares? Pode haver diversas respostas a esta pergunta, sendo sempre e antes de mais necessário explicar que outros formatos de ensino possibilitam uma gestão de tempo que permite, até, que estas crianças estejam expostas a realidades mais diversas no seu dia-a-dia do que apenas com os seus pares. A começar com a convivência regular com o adulto que se assume como responsável educativo (pai, mãe ou professor contratado – no caso do Ensino Individual), passando eventualmente pelos irmãos (nesta casa são quatro) e pela vida do dia-a-dia tal qual ela é, e na qual existe tempo para circular fora de portões o dia todo. Seria interessante assistir, houvesse uma câmara para estas realidades, à autonomia conquistada nas lides diárias – entre um estudo sentado numa cadeira e um intervalo, saber fazer compras, escolher fruta, cozinhar, apanhar transportes, resolver assuntos. Quando uma família em Ensino Doméstico opta por esta modalidade educativa, não é num principio de fuga – é muito importante acabar com o preconceito do isolamento, de crianças trancadas entre quatro paredes que serão adultos pouco treinados. Pelo contrário, a família, por principio, fá-lo para lhes trazer mais realidade do mundo, de manhã à noite. O que vejo ao meu redor não me embaraça: crianças e adolescentes que sabem falar com um adulto, que ajudam a tomar conta de um bebé, que procuram na biblioteca os livros complementares à matéria que estão a estudar, que estendem a roupa, que apanham transportes para se encontrar com os amigos, que não têm medo de abraçar novos desafios. A sociabilização faz-se de muitas formas e é importante abrir estas janelas e respirar fundo (em relação a este assunto, o artigo escrito aqui pela Inês Peceguina, é bastante pertinente do ponto de vista científico).

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A outra questão que surge, incontornável, é a do ensino. Como é que um pai ou mãe garantem que a criança aprende tudo? Parece-me incontestável que em contexto de escola exista quem não aprenda tudo, quando o que é requisitado para ter aprovação a uma disciplina é comprovar que se reteve 50% da informação (sendo que é possível ter menos de 50% a duas disciplinas para transitar de ano), mas compreendo a questão. Existem diferentes metodologias de ensino e nenhuma família que opte por assumir esta responsabilidade o faz levianamente. Se é certo que o modelo escolar se faz de um professor que transmite a informação, outros modelos há em que o adulto é o orientador do processo formativo. Uma criança num modelo individualizado acaba por expor dificuldades facilmente identificáveis, criando ela mesma um caminho de autonomia e confiança na aquisição do conhecimento que a ajuda a progredir. Se no ensino convencional é necessário garantir que existem manuais e testes para o professor se certificar de que aquele aluno – em trinta – reteve o mínimo, num modelo individualizado a criança tem como base mais diversidade para além do manual escolar, o acompanhamento consistente do adulto. As idas à biblioteca são uma constante – estou numa fase do ano em que quase perdi a conta à quantidade de livros que foram lidos nesta casa e que vão desde a história da monarquia à ficção em inglês – os recursos online são infindáveis e aquilo que se aprende vai além do horário pré-estabelecido. Começa de manhã, com o que é falado à mesa e conversado com amigos – a aprendizagem é um processo contínuo. Além disso, e à semelhança do que acontece na escola, os pais podem optar por apoios exteriores (as chamadas explicações), caso sintam que é necessário um complemento extra a qualquer conteúdo.

Posto isto, surge a questão da validação. Como pode o Estado garantir que estas crianças estão a aprender? Até 2019, exigiam-se ao Encarregado de Educação habilitações académicas correspondentes, no mínimo, ao ciclo de ensino superior àquele que iria lecionar, e as famílias nesta modalidade declaravam as suas intenções ao agrupamento de escolas da área da sua residência e comprometiam-se a prestar provas no final de cada ciclo de ensino. Como são feitas estas provas? No final do 4º, 6º e 9º ano, por exemplo, estas crianças comparecem no agrupamento para prestar provas escritas, práticas, e orais de todos os conteúdos estabelecidos. Isto pode significar que uma criança de 9 anos presta 5 provas escritas, 2 orais, e 1 prática, muitas vezes em dias consecutivos no espaço de uma semana. É tentar imaginar o que significa em números e ritmos nos anos acima. Um calendário impiedoso, que vale tudo ou nada na avaliação do trabalho de uma criança. Um calendário que nenhum pai com filhos em ambiente escolar e avaliação contínua aceitaria para os seus filhos. Mas é isso que as famílias em Ensino Doméstico são chamadas a fazer e têm feito. E segundo os dados, os resultados são satisfatórios, muitos deles acima da média.

Não sendo isto suficiente, em 2019 a lei foi alterada. A partir de então, os pais passaram a ter de fazer um pedido de intenção de optar pelo Ensino Doméstico (ou Individual) ao Diretor do Agrupamento, pedido este sujeito a aprovação após uma entrevista à criança e ao Encarregado de Educação, sendo estabelecido um protocolo de colaboração que pode implicar a família ser chamada à Escola tantas vezes quantas a Escola entender, apresentando um Projeto Educativo de como pretende ensinar a criança, terminando o ano letivo com uma nova entrevista e a apresentação de um portefólio. A avaliação continua dependente das provas de final de ciclo, mas a matrícula em Ensino Doméstico é renovada com base no parecer de todos estes fatores. Além disso, passou a ser obrigatória a a formação mínima ao nível da licenciatura do responsável educativo.

Dois anos passados, sabemos que se encontra a debate uma nova proposta de regulamentação destas modalidades. Uma nova proposta que estreita ainda mais o caminho de quem opta por estradas diferentes para chegar ao mesmo destino, uma proposta que altera o estilo de vida de quem escolheu outro ritmo. Impor ainda mais regras de controlo limita a liberdade de quem vive outros modelos e horários. Aceitar outras formas de ensinar é confiar que existem outras metodologias que funcionam e que não significam a transposição do modelo escolar tradicional para o ambiente de casa. Obrigar as famílias que assim vivem a adotar, cada vez mais, ritmos que são os da instituição inviabiliza claramente o sucesso e a qualidade do ensino das suas crianças.

Esta proposta que vai a debate no Parlamento na próxima quarta-feira enfraquece os princípios de liberdade e retira-os a quem não se encontra em incumprimento. Volto a dizer: não há incumprimento, não há dados de insucesso por parte de quem tem vivido estes modelos, não há sinais de abandono escolar ou negligência. Esta proposta compromete os princípios definidos na Constituição portuguesa e os da Liberdade de Abril.

Tenhamos presente uma das afirmações mais proferidas por estes dias, recordando o período pré-democracia: “As pessoas não podiam dizer o que pensavam”. Afirmamos que hoje podemos. Não quero acreditar que quem lutou por se poder dizer o que se pensa pretenda voltar atrás no tempo e assim restringir a forma como se educa. Esta proposta representa que todas as famílias, independentemente da sua escolha efetiva, perdem liberdade, aos lhes ser retirada a responsabilidade e poder de decisão sobre a educação dos seus filhos. É uma perda coletiva e um retrocesso temporal.