No contexto recente do Orçamento de Estado para 2025, o Governador do Banco de Portugal, e a própria instituição, por arrasto, têm tido uma participação atípica. Esta participação tem seguimento na passagem, de Mário Centeno de Ministro das Finanças de António Costa para Governador do Banco de Portugal (BdP), em julho de 2020. Relembro que o Governador do BdP é escolhido em Conselho de Ministros sob proposta do Ministro das Finanças. Desde então, Mário Centeno tem-se tornado num ator político que toma forma esporadicamente, às vezes como candidato presidencial, uma vez como potencial primeiro-ministro e outras, mais recentemente, como líder da oposição.
Primeiro, Mário Centeno, na sua faceta de líder da oposição, em meados de novembro, afirmou que haviam “números enganadores” sobre a retenção de licenciados em Portugal, e ainda que a “percentagem de jovens portugueses que emigram é inferior — menos de metade — da que se observa em países como Alemanha, Dinamarca ou Países Baixos”. Nessa mesma intervenção, o Governador afirmava que os jovens licenciados “estão cá”, numa tentativa de desvalorizar a preocupação com a emigração jovem. Esta intervenção não é politicamente neutra, já que desvaloriza o problema que o IRS Jovem, uma das bandeiras do atual Governo, pretende combater.
É claro que todas as famílias portuguesas, como a minha, que têm um ou mais familiares emigrados, tendo sido eu próprio um dos casos temporariamente, devem todas esquecer a realidade e ouvir os números que o Governador tem para oferecer. Assim, aproveitaremos a estatística para matar as saudades dos nossos familiares, gozando um bom chá junto a um gráfico, enquanto nos consolamos com o facto do nosso sofrimento ser menor que o dos alemães, dinamarqueses ou holandeses. Tal como com a degradação observada nos governos de António Costa na saúde, na educação e nas fronteiras, não há qualquer problema: é tudo uma questão de “percepção”.
O segundo episódio aconteceu este mês: o boletim económico de dezembro publicado pelo Banco de Portugal, tem um estudo sobre o IRC, elaborado por quatro economistas da equipa do departamento de Estudos Económicos. Estou certo que foram honestos no seu trabalho e saúdo o papel que tem em suportar a decisão política com um pensamento mais profundo sobre o tema. Contudo, mais uma vez, o estudo levou a conclusões desfavoráveis à decisão da baixa do IRC, outra bandeira do atual Governo. Aqui, aproveito para notar algumas “assumptions” do estudo, que me parecem colocar em causa a sua utilidade para esta política fiscal: “Os equilíbrios do modelo assentam na hipótese de que a produtividade total dos fatores não é influenciada pela redução do IRC e não repercutem qualquer impacto relacionado com competitividade externa e possível atração de investimento estrangeiro.” Ora essas duas dimensões não podem ser descartadas assim, visto que será legitimo esperar um maior investimento estrangeiro e uma melhor competitividade das empresas, quando falamos da redução de um custo. Nesta matéria, vale também a pena ter em conta o estudo da Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS).
Mário Centeno disse que cabe a uma entidade com a responsabilidade do Banco de Portugal “alertar para isso”, pois não é possível fazer “boas políticas económicas sem bons dados e boa análise económica”. De facto, o Banco de Portugal tem muitas missões e funções, entre as quais a supervisão da banca e contribuir para a política monetária da Zona Euro. Contudo, tenho sérias dúvidas que possamos dar de barato que o atual Governador esteja isento politicamente nos seus alertas para uma “boa política económica”. Por exemplo, nem todos concordamos que a sua grande vitória seja uma “boa política económica”. Estou a falar do défice baixo em 2016, por via de um record mínimo em investimento público, seguido de 4 anos de baixo investimento público e forte aumento da despesa corrente.
Vou exemplificar aqui, também com dados do INE, a “boa política económica”: As despesas de capital durante o governo PSD/CDS-PP, entre 2012 e 2015 (4 anos), somaram 37,4 mil milhões; já o governo do PS, que sob alçada de Mário Centeno iria “virar a página da austeridade”, entre 2016 e 2019 (outros 4 anos) foram de 24 mil milhões de euros. São menos 13 mil milhões (1400 milhões de euros em média por ano em despesas de capital, ou um corte de 18%). Contudo, no mesmo período, Centeno permitiu que a receita corrente crescesse em média 4 mil milhões de euros ao ano, ou 4,5%. Para que não restem dúvidas, foi preciso chegar a 2023 para o governo do PS superar o record de despesas de capital observadas em 2014, no valor de 10 mil milhões. Esta política orçamental foi míope e justifica os problemas que vivemos nos serviços públicos.
Não quero chegar ao ponto de afirmar que a estrutura do Banco de Portugal, nos momentos em que o Governador veste o chapéu político como líder da oposição ao governo ou como candidato presidencial, se transforma num gigante gabinete de assessoria. Contudo, o Banco pronunciou-se especificamente sobre as duas maiores bandeiras do Governo, e precisamente as duas linhas vermelhas impostas inicialmente pelo líder do PS, Pedro Nuno Santos. Assim, torna-se inviável separar os episódios de presença política de Mário Centeno daquela que tem sido a sua intervenção como Governador. Há dois meses, houve ainda mais um episódio caricato e demonstrativo da dificuldade do Governador em se desligar do seu passado como ministro das finanças: António Costa entrevistou Mário Centeno na Now, e o vídeo foi publicado sob a marca do próprio Banco de Portugal no Youtube, onde ambos puderam promover as políticas do governo socialista.
Estes episódios minam a independência que se exige da instituição de prestígio e renome que é o BdP. Tal como a instituição militar, o BdP nunca deveria ser instrumentalizado para fins político-partidários, porque a credibilidade e o prestígio das instituições dependem também da independência no cumprimento das suas funções e missão.