Numa sinfonia de elementos históricos, arquitectónicos, paisagísticos, musicais e literários, a Casa de Mateus, em Vila Real, onde Fernando de Albuquerque deixa um vultoso legado, alia a um coração palpitante de actualidade e modernismo, à história portuguesa mais remota.
Numa rara mescla de fidalguia/aristocracia, o Pai de Fernando, desaparecido tragicamente em 1973, D. Francisco de Sousa e Albuquerque, trabalhou a vida inteira para instituir, em 1970, a sua casa como Fundação da Casa de Mateus, num figurino de singularidade irreplicável que permitiu a sobrevivência de um património, de uma história e de uma cultura riquíssimas.
O rasgo de seu Pai abriu a Fernando de Albuquerque uma avenida ampla à sua excepcional criatividade no mundo da Cultura. E às suas nobrezas, a do morgadio, que era a mais importante que ostentava, aliava outras fidalguias que também levava no sangue: além de 12º Morgado de Mateus, era 6º Conde de Vila Real, 5º Conde de Melo e 4º Conde de Mangualde. E para além de todos os títulos, com tenacidade, adicionou a Mateus um conteúdo e um prestígio que, vindos de longe, na nossa terra, não têm paralelo.
Sobre os ombros de Fernando e de sua mulher, Maria Amélia Nunes da Ponte de Albuquerque, assentaram com perfeição as costuras daquele Monumento de equilíbrio barroco português que é o Palácio de Mateus. Os dois, foram os alfaiates do próprio fato que o Monumento agora usa com gala, ele e ela os artífices do maior sucesso de dinamização cultural privada que se conhece no Portugal profundo, e que o Estado justamente apoiou, tal como o fizeram numerosas entidades privadas, e um número sem fim de figuras de grande prestígio nacional e internacional.
O Palácio, Monumento Nacional desde 23 de Junho de 1910, graças à dinâmica de cultura que o enche, conseguiu manter-se até hoje mais jovem do que quando foi construído no século XVIII, um conjunto surpreendente, de que Fernando foi o grande maestro, com sua Mulher Maria Amélia a ajudar à sinfonia que ele compôs, ela um incontornável apoio de saber, de encanto e de eterno feminino, sempre presente nas mais complexas circunstâncias, simbolizado no esplendoroso roseiral de sua iniciativa, com cerca de 3.000 plantas que que dão cor ao parterre, o belo jardim de buxos das traseiras de Mateus.
Dos 5 ou 6 Palácios existentes no nosso País, pertencentes a grandes famílias portuguesas, e que são comparáveis entre si pelo seu esplendor e significado histórico, o único no qual palpitou nestes últimos 40 anos vida forte e permanentemente dinamizada por cultura estrutural, é Mateus.
Mateus arrancou para a notoriedade nacional e internacional na segunda metade dos anos 70 com os seminários Repensar Portugal e Cultura em Debate, reunindo os expoentes máximos da literatura, da música, do pensamento e da política portugueses. O Palácio passou desde então a existir como um pilar do Douro e Trás-os-Montes, com os seus Cursos para Artistas Residentes, Festivais de Música, o Instituto Internacional Casa de Mateus, os seus Prémios Literários, os Seminários de Tradução Colectiva de Poesia Viva, e os seus apoios às artes plásticas.
Os Encontros de Música da Casa de Mateus constituíram uma das iniciativas culturais que mais marcou o Portugal profundo. Iniciados pelo dia 28 de Junho de cada ano, conheci concertos quase diários, que até Setembro ocorriam no Palácio, e também nas remotas terras do interior de Trás-os-Montes e Alto Douro. Eram dezenas, não só na Casa de Mateus, como em muitas outras localidades do Norte de Portugal, tão diversificadas como S. João da Pesqueira, Alijó, Boticas, Vila Pouca de Aguiar, Régua, Alfândega da Fé, etc, etc. Esta “sementeira” de música erudita por todo o Norte, tornou, além de Vila Real, outras cidades e vilas relativamente pequenas, em verdadeiras capitais da cultura, a que acresceram os intérpretes de incomparável prestígio que acederam a actuar em Mateus e em todas essas localidades. Celebridades como Teresa Berganza uma das maiores mezzo-soprano de todos os tempos, Ileana Cotrubas soprano de renome, Dalton Baldwin, pianista com mais de 100 gravações em CD, que acompanhou as grandes divas, Mário Laginha, nosso grande pianista e compositor, Dagoberto Linhares, prestigiado e laureado guitarrista brasileiro especializado em música de Câmara, Gustav Leonhardt, um dos maiores cravistas de sempre, e muitos outros, trouxeram a mágica da grande música ao Douro. Na música antiga, na guitarra clássica, no canto, na ópera, na música orquestral, Fernando de Albuquerque a tudo emprestou vivacidade e brilho. O interior do país enriquecido, a “província” feita capital, a música ecoando lá dentro do Portugal profundo, emergente e enriquecido com tudo isso.
A literatura foi uma área em que Mateus se excedeu. Dois Prémios Nobel (Camilo José Cela e José Saramago) e outras grandes figuras da literatura portuguesa foram destinatários do cobiçado Prémio D. Diniz, instituído em 1980. Recordo os nomes de Mário Cláudio, Marcello Duarte Mathias, Rui Ramos, Manuel Alegre, José Cardoso Pires, Eduardo Lourenço, Nuno Júdice, Sophia Mello Breyner Andresen, David Mourão Ferreira, Virgílio Ferreira, Agustina Bessa Luís, e muitos outros escritores geniais que foram agraciados com esse prestigiado prémio literário anualmente destinado ao autor de obra de poesia, de ficção, ou de ensaio, eleito por júris compostos pela elite da intelectualidade nacional.
Em 2013, o escritor Vasco Graça Moura, recebeu o Prémio Morgado de Mateus, criado para distinguir apenas o conjunto da obra de um autor. Esse Prémio, foi também instituído em 1980, ano em que os galardoados ex-áqueo foram Miguel Torga e Carlos Drummond de Andrade. Não voltou a ser atribuído.
Ao franquear os portões dos jardins daquele Palácio numa manhã de qualquer dia quente de Verão, vêm-se a vaguear pelas veredas vultos de intelectuais, músicos, escritores, estudantes, turistas (120.000 visitantes em 2019) e sentem-se as fragrâncias inconfundíveis que os musgos, os buxos e outra flora daquela região conferem ao ambiente, nos contrastes das luzes e sombras que as transparências do ar das serranias do Marão acentuam.
Vila Real de Trás-os-Montes é um modelo de cidade do interior que, não só não se desertificou, como adquiriu nas últimas décadas uma estatura cultural e económica, e um dinamismo social, ímpares em Portugal. “Para lá do Marão mandam os que lá estão”, diz o ditado: e eles mandaram bem! É realmente impressionante o impacto que no desenvolvimento de Vila Real e de todo o interior que existe sob a sua esfera de influência, tiveram a Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, e a Fundação da Casa de Mateus!
Fernando de Albuquerque não só conseguiu manter e restaurar tudo o necessário no Palácio, como criou um auditório, que se confronta com a antiga eira, como construiu ao fundo do parque a Residência de Artistas, da autoria da Arquitecta Teresa Nunes da Ponte, num exemplo paradigmático na arte de recuperação de antigas estruturas. Essa Residência, que dista uns 300 metros do Palácio, divide-se em duas zonas, entremeadas por um rio, com a sua nora. Em espaços harmoniosos e imaginativamente distribuídos, situam-se numerosos quartos, as salas de ensaio e estudo, com os seus instrumentos musicais, e salas de estar amplas, mas inesperadamente íntimas, ligadas por corredores e troços de escadas abertas, amplas, luminosas. Tudo pensado para artistas residentes. Vê-se que frutificou: além de muitos e bons quadros de artistas que deixaram o testemunho do seu agradecimento a Fernando de Albuquerque nas paredes, vários painéis de fotografias mostram a multidão de grandes figuras nacionais e internacionais do mundo das artes e do pensamento que por lá têm passado.
A República, que reconhece os que mais se notabilizam no País, devia ter-lhe ajoujado o peito com medalhas, condecorações, e com todas as prebendas e honras que figuram no seu catálogo. Ao cair de 2021, e dois meses antes de seu falecimento, Fernando de Albuquerque foi finalmente agraciado com a Grã-Cruz da Ordem do Infante pelo Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, honra que há muito lhe era devida. Celebre-se hoje e sempre um português com apelidos ilustres, incluindo o da Cultura.