68% dos franceses estão contra a subida da idade da reforma dos 62 para os 64 anos. Macron, numa nova tentativa para enfrentar a demografia negativa que, de forma crescente, inviabiliza a sustentabilidade do Estado social, vai avançar.

E já se vislumbram, desde o dia 18, coletes amarelos, incolores, e pretos anti-bala, preparados para as vandalizações de que a França parece não se cansar, numa espécie de hara-kiri recorrente.

De facto, uma greve geral arrancou no início da noite do dia 18 e vai durar até ao dia 20, afectando os transportes públicos em particular, comboios, aviões, metro, esperando-se que um em cada cinco voos de ou para o aeroporto de Orly, em Paris, seja cancelado. Grandes greves são esperadas na França. em vários sectores, em Janeiro e Fevereiro.

A manifestação de 18 partiu da Place d’Italie para ir até aos Invalides (©CD/ actu Paris)

Ora, em 4 dias da semana que antecede um caos, deparei-me com um Paris desafogado, idílico, irreal, romântico, um trânsito fluído, nem um colete amarelo, nem uma barreira de metal, nem um polícia armado, nem um sinal que fosse de tensão social.

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Apenas se encontraram cidadãos afáveis, bistrots à cunha, poucos estrangeiros (é Janeiro…), e cultura a rodos.

Os símbolos vivem para além da espuma…

Nos Champs Elysées, avenida mítica que estava a caminho de se transformar definitivamente num souk, num bazar ao ar livre, apenas ouvi falar francês sem sotaque, lojas estupendas, limpeza, ausência de qualquer barreira. Claro que, naquela extensão toda, há muito que desapareceram as mil francesas que por ali transitavam numa nuvem de saias esvoaçantes, elegantes, sedutoras, as dos anos 60 e 70, tal como se esvaíram as outras, a desafiarem a cada dez metros “tu veux passer un beau momment, mon petit?”, um convite enfático que muitos homens ouviam repetidamente nos boulevards…

E até a Place de l´Étoile, agora despoluída das fantasias do Christo que conseguiu embrulhar o Arco do Triunfo durante largo tempo, a chama do soldado desconhecido continua a afagar a identidade nacional francesa.

Foi um regresso descontaminado à grandiosidade que Hausmann deu a Paris, o génio que atingiu o equilíbrio urbanístico elevado à enésima potência a partir de 1852, com espaços abertos em jardins e parques que são hinos à cidadania estética da francofonia, com a amplidão das avenidas que se estendem, infindáveis, envolvidas numa harmonia arquitectónica sem igual, com uma monumentalidade que não existe em mais nenhuma cidade do mundo.

Muito penoso é constatar como foi que a universalidade da cultura francesa, que está lá, palpitante como sempre foi, se fechou sobre si própria, como uma ostra, apesar de a França ter uma economia vibrante que permite à iniciativa privada criar grande riqueza e prosperidade para o seu entorno social e cultural.

Veja-se o caso de François Pinault, por exemplo. Para muitos, e após o Centro Pompidou, agora o malvado capitalista arrancou o coração a Les Halles, no 1er arrondissement, arruinando o “ventre de Paris”, onde funcionava um mercado colorido, onde se comia, se fazia amor, se dava à luz, o bairro de Zola, de Manet, de Breton, o bairro dos apaches e da insegurança, da cidade profunda, que deixou de aí mostrar uma das facetas mais eloquentes dos contrastes sociais e culturais da capital francesa.

A Bourse du Commerce nas Halles: o capital e o povo.

O que hoje se encontra na zona de Les Halles, muito graças a Pinault, além de uma zona segura, é uma Bourse du Commerce, que estava arruinada e sem proveito, agora recuperada pelo arqui-famoso Tadao Ando até ao último detalhe, transformada em museu, num projecto arquitectónico grandioso, onde o bilionário oferece ao público arte contemporânea de vanguarda, quer em exposições temporárias, quer na sua vasta colecção que abarca cerca de 5.000 peças que incluem numerosos Picasso, Mondrian, Jeff Koons e muitos outros. O empresário controla o Château Latour, Yves Saint Laurent, Alexander McQueen, Boucheron, Gucci, a leiloeira Chistie’s, Conforama, Printemps, La Redoute, FNAC, o clube de futebol Rennes,  etc., com uma fortuna avaliada em cerca de €40 biliões. Tem apoiado de forma expressiva o restauro de outros numerosos monumentos, designadamente a Catedral de Notre Dame, para cuja recuperação, após o pavoroso incêndo de 2019, está a contribuir com cerca de €100 milhões.

Outro caso é o de Bernard Arnault, que sendo hoje a maior fortuna do mundo, cerca de €200 biliões, abarca a Louis Vuitton -LVMH, grupo que engloba marcas como o Moet et Chandon, a Henessy, Louis Vuitton, Guerlain, Christian Dior e Tiffany’s, Bulgari, Loewe, Château Cheval Blanc, Château d’Yquem., etc,. A empresa “Boussac”, com um slogan publicitário que ficou na memória de muitos soixanthuitards como eu (“Tissus Garantis Boussac”), está no arranque de Arnault para o caminho que levou ao seu gigantismo global.

O grupo de Bernard Arnault inclui também a propriedade dos famosos armazéns La Samaritaine, situados igualmente no 1er Arrodissement, adquiridos em 2001 e reabertos em 2021 com a presença de Emmanuel Macron. Este negócio comercial iniciou-se em 1870 e, 100 anos depois, entrou em declínio, tornando-se no mais barato e ordinário estabelecimento do género (sendo os outros dois concorrentes da cidade as Galleries Lafayette e Au Printemps). Hoje, dos três edifícios vizinhos com o mesmo nome, o estabelecimento principal de La Samaritaine mantém-se uma jóia de Arte Nova assinada, na origem centenária, pelo arquitecto Frantz Jourdain, dedicando os seus cinco pisos apenas a marcas de luxo. A sua leveza e luminosidade, aliada à beleza dos materiais escolhidos originalmente e admiravelmente restaurados, faz desta loja um monumento ao bom gosto francês, à cultura do séc XIX totalmente actualizada, e à faceta romântica da época em que o edifício nasceu.

Ainda pensando em Pinault e na LVMH, quem hoje em dia vá a Paris, não pode perder a Fundação Louis Vuitton, no Bois de Boulogne, instalada num edifício assinado pelo ousado arquitecto Frank Gehry. Até 27 de Fevereiro, está aberta a exposição “Monet-Mitchell”, um fascinante diálogo cruzado entre a genialidade pré abstrata dos nenúfares de Claude Monet (36 quadros), e o expressionismo abstrato da americana Joan Mitchell (24 telas), que viveu entre 1925 e 1992, não terminando os seus dias na sua casa de Vétheuil, que, com Giverny, foi a referência de Monet, apenas por ter sido transportada para um hospital em Paris , imediatamente antes de morrer.

A Presidente da Câmara de Paris desde 2014, a socialista Anne Hidalgo, apesar de ter recolhido um humilhante 1,75% dos votos nas últimas eleições presidenciais francesas, deixa surpreendido quem não vive o ziguezaguear da política do país. Ao visitar a Cidade Luz, fica-se algo intrigado, não só com a aparência da boa organização, limpeza, e funcionamento social do centro da cidade (a periferia é outro assunto, bem complexo, por sinal), como com a aliança entre o grande capital e as Instiuições do Estado e Camarárias, que levou a que o 1er Arrondissement , anteriormente muito conflictivo, se transformasse num centro de cultura e de paz social.

A vitalidade incomburente de Paris, na boémia, no livro, na pintura

A par das colecções permanentes dos grandes Museus que fazem parte do itinerário obrigatório de qualquer visitante, Paris apresenta uma rotação de exposições temáticas que fazem inveja às principais cidades concorrentes, sobretudo a Londres e Nova York. Basta comprar a revista Connaissance des Arts, sempre à venda em Portugal, para se ficar com uma ideia dessa vitalidade. Até 23 de Janeiro, no Museu do Quay d’Orsay estão patentes ao público numerosos quadros do norueguês Edvard Munch, conhecido sobretudo pelo seu lancinante quadro “O Grito”. São cerca de 100 obras que abraçam toda a extraordinária carreira do artista. Quem se interesse pelo “Grito” fica estupefacto, pois desconhece a existência de um trabalho de tal amplitude, muito do qual expressa morte, angústia, depressão. E o contraste dessa obra face a variados exemplos de pintura quase romântica, abre caminhos de surpresa deveras fascinantes.

O norueguês Edvard Munch: vasto poema, pouco conhecido, de vida, de amor e de morte

Entre o bistrot, o grande museu, o cabaret, a opera, a vetusta livraria, o bouquiniste, as margens do Sena (já sem namorados a beijarem-se), as Tuileries, o monumento e o palácio, a liturgia dos restaurantes melhores, o grande actor de teatro com as grandes peças em exibição, em todo o lado a Luz da Cidade continua a brilhar. Nos amplos boulevards imaculadamente mantidos, a cultura francesa está viva e jovem.

Custa a perceber como foi que a literatura, o cinema e a música popular perderam a visibilidade internacional que ofereceram ao mundo durante tanto tempo. E perguntamo-nos como é possível que a belíssima língua franca (o francês deixou de ser o idioma da diplomacia internacional) e a francofonia se tivessem deixado mirrar, esmagadas sobretudo pelo desafio americano e por outros factores sociais e económicos com que a sociedade de hoje se enfrenta, numa França com uma classe média muito abrangente e ilustrada.

E, em Portugal, deixou-se de falar francês, língua que até aos anos 70 era a base da educação para o mundo. Que fazer das bibliotecas em língua francesa que ainda muitos possuem? Lê-se pouco, e em francês, nada. Exportá-las para França? Oferecê-las a um país africano francófono?

Entretanto, em Portugal está em curso a 4ª invasão francesa, desta vez pacífica, abastada, que aqui se instala e investe enriquecendo a economia, seduzida pelos bons vinhos (que esmagam em qualidade e preço grande parte de medíocres vinhos franceses a €60/80 a garrafa), por uma gastronomia menos adepta a molhos, pelos brandos costumes, por um clima ameno, por uma emigração altamente fusionada e pacífica, que os trata com grande afabilidade, mesmo quando nas suas riquezas se isolam em guetos.

Um dos muitos portugueses com que nos cruzámos, todos com histórias de vida parecidas, era motorista de táxi, a viver há 40 anos nos subúrbios de Paris, hélàs!, onde não se vislumbra a aparência de paraíso que aflora no enorme “centro” da cidade, no “não subúrbio”. Este homem, após mil sacrifícios, mas tal como milhares de outros portugueses, e à semelhança dos nativos franceses – esses reconfortados por uma vida de trabalho mais fácil – vem para Portugal este ano.

A causa é o subúrbio, onde durante décadas se integrara. Aí, com a emergente e quase permanente perturbação social de cariz racial e religioso dos últimos anos, causada pela pobreza e pelos emigrantes, percebeu que, ao contrário dele e de todos os nossos compatriotas, essa “nova onda” se guetizara nas suas violências, evoluindo para uma França que rejeita, pois é a antítese daquilo em que, “à portuguesa”, ele se fusionara desde a sua chegada há décadas. Farto, regressa à sua casa (será tipo “maison”?) em Vilar-Formoso, no fim do ano

E agora, numa capital tão contrastada entre a revolução francesa sempre a reemergir, mas próxima ao grande capital e à cultura, vingará a tentativa de viabilização de uma grande fatia do Estado Social com a subida de da idade da reforma para os 64 anos? Teme-se que, nestes próximos tempos, as barricadas, as bandeiras de todos os tons políticos, e os coletes anti bala pretos juntos aos amarelos se voltem a reunir, numa selva de barreiras de metal que vão obscurecer de novo o esplendor da urbe que transporta essa bela e tão apropriada expressão “Cidade Luz”.

19 Janeiro 2023