A medicina é uma ciência. A moral é um conjunto de convicções e costumes. É errado e perigoso exercer a medicina com moralidade.
Uma ciência que descreve um distúrbio de personalidade anti-social e um médico que se dedica ao tratamento sem julgamento de um doente destes, assumem sem equívocos a sua amoralidade. Num hospital, um criminoso merece e recebe os mesmos cuidados que uma vítima inocente. Não há lugar para moralismos na ciência e prática médica. Todos os doentes sem discriminação, merecem os nossos melhores cuidados.
A ética na prática médica está noutro nível. Diz respeito a fazer o bem e não fazer o mal aos doentes. Não diz para fazer o bem aos doentes bons e o mal aos maus. Aliás, na ética médica não existem doentes bons e maus, segundo os valores morais da sociedade a que pertencem.
Na História, os momentos em que a medicina serviu um propósito ideológico ou político, foram regra geral de má memória.
Revisitei este axioma da amoralidade da medicina, a propósito da disforia de género. Porque receio que este tema seja impregnado de moralismo, paixão e até fanatismo, e esvaziado de rigor e método científico. Porque receio que se confunda ciência médica com antropologia, sociologia ou uma qualquer ideologia.
Porque medicina não é proselitismo. É uma ciência. E sobretudo porque a ciência existe (e persiste) como método de desconstruir preconceitos, e receio que se esteja a fazer o caminho diametralmente oposto nesta área.
Ao psiquiatra compete objectivar, descrever, classificar e sistematizar as sensações de mal-estar (i.e. disforias), enquadrando-as na ICD (classificação estatística internacional de doenças) e no DSM (manual diagnóstico e estatístico de distúrbios mentais). Poderá eventualmente ser necessário actualizar estas classificações e incorporar novas entidades clínicas, em função da evidência científica disponível e consenso técnico internacional do momento. E esta definição e caracterização do que é patológico (i.e. distúrbio mental) e do que não é, permitirão ao psiquiatra encontrar e oferecer o melhor tratamento para os doentes.
O endocrinologista por seu lado, deverá reconhecer que as hormonas sexuais afectam os comportamentos sociais. Não se trata de uma interpretação subjectiva e preconceituosa da sociedade. As hormonas sexuais têm de facto efeitos psicológicos, no humor e na cognição dos seres humanos, reconhecidos pelo senso comum e por estudos científicos. E as hormonas sexuais têm também efeitos cardiovasculares e oncológicos não despiciendos, que não podem ser omitidos pelo endocrinologista.
A História da medicina está repleta de exemplos de medicamentos e técnicas cirúrgicas cujos resultados se revelaram catastróficos depois de um enorme entusiasmo inicial. A honestidade intelectual, publicação de resultados sem truques ou omissões, apreciação metódica e desapaixonada do contraditório, disponibilidade para o debate público com objectividade e sobretudo a dúvida sistemática, são os pilares da ciência, seja ela qual for.
A sensação de mal-estar (i.e. disforia) com os caracteres sexuais à nascença é uma realidade da natureza. Quando provoca sofrimento, deve ser tratada e não estigmatizada.
Enquanto ciência amoral que é, segundo o método científico que utiliza, a medicina tem lugar na prevenção e tratamento dos sinais e sintomas específicos que afectam o perfeito bem-estar físico, mental e social de um indivíduo.
Se a medicina quiser ter uma abordagem dogmática/ maniqueísta/ moralista/ ideológica/ apaixonada/ prosélita/ política do tema, deixará de ser medicina e os doentes no seu sofrimento deixarão de ser o centro da nossa atenção.