“Senhor, umas casas existem no vosso reino, onde homens vivem em comum, comendo do mesmo alimento, dormindo em leitos iguais. De manhã, a um toque de corneta se levantam para obedecer. De noite, a outro toque de corneta, se deitam obedecendo. Da Vontade fizeram renúncia como da Vida.

“Seu nome é Sacrifício. Por ofício desprezam a morte e o sofrimento físico. Seus pecados mesmos são generosos, facilmente esplêndidos. A beleza de suas acções é tão grande que os poetas não se cansam de a celebrar. Quando eles passam juntos, fazendo barulho, os corações mais cansados sentem estremecer alguma coisa dentro de si. A gente conhece-os por militares…

“Corações mesquinhos lançam-lhes em rosto o pão que comem; como se os cobres do pré pudessem pagar a Liberdade e a Vida. Publicistas de vista curta acham-nos caros demais, como se alguma coisa houvesse mais cara que a servidão.

“Eles, porém, calados, continuam guardando a Nação do estrangeiro e de si mesma. Pelo preço de sua sujeição, eles compram a liberdade para todos e a defendem da invasão estranha e do jugo das paixões. Se a força das coisas os impede agora de fazer em rigor tudo isto, algum dia o fizeram, algum dia o farão. E, desde hoje, é como se o fizessem.

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“Porque, por definição, o homem da guerra é nobre. E quando ele se põe em marcha, à sua esquerda vai a coragem, e à sua direita a disciplina.”

Guilherme Joaquim de Moniz Barreto tinha 30 anos quando escreveu esta carta ao Rei D. Carlos, em 1893. Sobejam-lhe eloquência e qualidade literária que irão porventura faltar nas linhas que seguem, mas ainda assim penso que será oportuno escrever sobre os militares.

Em Portugal, o Serviço Militar Obrigatório (SMO) terminou em 2004 e os últimos anos em que vigorou, foram de lenta agonia embaraçada. Chamava-se Serviço Efectivo Normal (SEN), que denotava a vergonha em proferir as palavras “militar” e “obrigatório”. Eram os sinais dos tempos.

Os ramos das Forças Armadas (FFAA) preparavam-se para um novo modelo, que já não iria mais contar com os homens recrutados para o SEN. Nesse contexto, era expectável que a esses homens fossem atribuídas tarefas cada vez menos essenciais à instituição, que planeava um futuro a prazo sem eles. O resultado e os relatos de quem era recrutado foram convenientes aos decisores políticos e à opinião pública, que naturalmente se opunha a ter de cumprir uma obrigação militar. A maioria dos homens que cumpriu o SEN perguntava-se “O que é que eu estou aqui a fazer?” Tinham razão e davam razão aos políticos que decidiram acabar com esse Serviço. Missão cumprida!

Podemos escolher encarar as FFAA como uma instituição supérflua. Podemos questionar a sua utilidade à vida quotidiana da sociedade civil e ao bem-estar das comunidades. Podemos acreditar que não existe nenhuma ameaça externa que possa agredir o nosso país, ou que nenhumas FFAA conseguirão defender-nos do que quer que seja. Julgo que essa opinião pública prevaleceu até há 2 anos, mas foi abalada por uma pandemia e por uma guerra na Europa.

Também podemos escolher encarar as FFAA de outra forma, começando por assinalar os deveres militares de obediência, disponibilidade, autoridade, tutela, lealdade, zelo, camaradagem, responsabilidade, sigilo, honestidade, correcção e aprumo. Inscritos na Lei Orgânica nº 2/2009, penso poder afirmar que representam os deveres sociais com que nos identificamos na vida civil.

E é por estes deveres cívicos que eu defendo o restabelecimento do SMO. Porque acredito que a instituição militar é aquela que está mais vocacionada para a educação para cidadania.

É universal o desejo de constituir uma Nação de pessoas saudáveis, física e psicologicamente aptas, cultas, educadas, estimuladas a dar o seu melhor em prol da comunidade, integradas por valores morais e culturais unitários e inclusivos.

A Constituição da República Portuguesa, no Capítulo dos Direitos e Deveres Culturais, mais precisamente nos artigos 73º, 78º e 79º, determina que “todos têm direito à educação e à cultura (…) à cultura física e ao desporto (…) bem como o dever de preservar, defender e valorizar o património cultural”. Nesse sentido, “o Estado promove a democratização da educação e as demais condições para que a educação, realizada através da escola e de outros meios formativos, contribua para a igualdade de oportunidades, a superação das desigualdades económicas, sociais e culturais, o desenvolvimento da personalidade e do espírito de tolerância, de compreensão mútua, de solidariedade e de responsabilidade, para o progresso social e para a participação democrática na vida colectiva”.

Encaro as FFAA exactamente como o melhor dos “outros meios formativos”.

Não reinventemos a roda. Deixemos de lado a vaidade criativo-legislativa. A alternativa será pior.

Na minha opinião, o maior mérito do SMO é constituir-se no mais poderoso instrumento de coesão social, promotor da paz, bem-estar e segurança nas comunidades. É a sua capacidade de unir numa mesma caserna, vestidos de uniforme, homens (e agora também mulheres) de todos os diferentes grupos sociais na defesa de uma mesma bandeira, e sentá-los à mesma mesa, comendo a mesma comida. E é como a camaradagem aí gerada continua, quando esses homens e mulheres regressam às suas vidas, às suas terras e aos seus bairros. João Ferro Rodrigues no seu livro “A Era do Nós”, cuja leitura recomendo, reflecte muito bem a este respeito e sobre a necessidade de rebentar a bolha em que vivemos.

Defendo um modelo de SMO diferente daquele que terminou há 18 anos. Pretendo um SMO orientado para o bem comum, que ofereça reais benefícios para o cidadão enquanto indivíduo e para a sociedade como um todo. Tenho em vista um SMO permanentemente articulado com a sociedade civil, destinado a dar resposta às suas necessidades. Um SMO capaz de despertar novos interesses, aptidões e talentos (não necessariamente militares), orientado para o fomento de novas competências, habilidades e perícias individuais. Um SMO que assume o seu papel no desenvolvimento da personalidade, espírito de tolerância, compreensão mútua, solidariedade e responsabilidade dos mancebos, vocacionado para fortalecer a participação democrática na vida colectiva do seu País.

Não desejo de forma alguma a militarização da sociedade civil, nem a sua instrumentalização para pura satisfação de caprichos dos militares.

E defendo um SMO universal para homens e mulheres, numa sociedade que não discrimina os cidadãos pelo sexo, que lhes oferece iguais direitos e oportunidades, mas também lhes exige iguais deveres para com o seu País. A discriminação que vigorou em Portugal até 2004 e que em 2022 está a ser imposta pela lei marcial ucraniana, tornou-se difícil de aceitar, à luz da ideologia da igualdade de género.

Temos no SMO, não só uma soberana oportunidade política para resolver eventuais problemas de igualdade de género na instituição militar, mas também de pugnar pela igualdade de direitos, liberdades, garantias e deveres dos cidadãos, sem discriminação pela sua ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.

A cidadania é por definição um vínculo que traduz a condição de um indivíduo enquanto membro de um Estado ou comunidade política, constituindo-o como detentor de direitos e de obrigações perante essa entidade. O SMO será a pedra angular do seu enquadramento.

Poderia ainda desenvolver um texto sobre os méritos do SMO no fortalecimento da identidade nacional e na preparação de um povo para a defesa do seu território, mas correria o risco de se tornar uma dissertação lapalissiana acerca de um ovo de Colombo descoberto há milhares de anos, sobre o qual as civilizações e os países se constituíram.

Termino com um apelo à reflexão sobre os riscos que corremos, se as FFAA, enquanto detentoras do monopólio legítimo da violência, não representarem e nelas não estiver representada a Nação que devem defender. É nosso dever encarar de frente o problema do recrutamento militar, da falta de atractividade e de condições da carreira militar, do afastamento progressivo entre as FFAA e a sociedade civil, e reconhecer que estes factores são propícios a fornecer instrução militar e licença de uso e porte de arma de qualquer calibre a indivíduos e grupos de pessoas mal-intencionadas.

E também por isso defendo o restabelecimento do Serviço Militar Obrigatório.