Recentemente, tal como fazem todos os anos, mais de 2000 médicos portugueses concorreram para  escolher a sua especialização. Infelizmente, muitos escolheram não o fazer…

As escolhas começaram a 16 e terminaram a 28 de novembro de 2022. O processo é moroso porque tem que se dar oportunidade a cada um dos candidatos de optar conscientemente pelas vagas que ainda restam. Naqueles cinco minutos escolhe-se um percurso de vida… a primeira candidata podia escolher entre 2044 vagas de 48 especialidades médicas e escolheu dermatovenereologia e o último já só tinha 161 vagas por onde escolher e… não escolheu nenhuma!

De facto, dos 2321 candidatos, houve 438 que não escolheram vaga e isso não seria tão inesperado se não tivesse havido seis especialidades em que as vagas não foram todas ocupadas, tendo sobrado no total 161. Note-se que quase 1 em cada 5 médicos (438 em 2321 = 18,87%) que se submeteram ao exame (Prova Nacional de Acesso), acabaram por decidir não escolher qualquer vaga de especialização. E isto depois de fazerem um exame dificílimo, em novembro de 2021, cuja preparação leva muitos meses a fazer. Ou seja, e depois de ainda estarem à espera mais um ano pelo concurso (e muitos estão à espera há mais tempo…) decidiram, não decidir o futuro!

Aqui chegados, temos de perceber porque é que os médicos  jovens não quiseram fazer o “sacrifício” de entrar numa das 138 vagas de Medicina Geral e Familiar (MGF) ou Medicina Interna que sobraram. As restantes, para um total de 161 vagas que ficaram desertas, são 23 vagas de quatro especialidades que, mesmo em conjunto, não são numericamente relevantes, mas são muitíssimo relevantes pelo sinal claro de recusa dos candidatos: ninguém as quis ocupar!

Analisando mais finamente percebemos que 85 são vagas hospitalares e 76 são vagas nos cuidados primários (Medicina Geral e Familiar e Saúde Pública) e que 60,25% das vagas sobrantes (97 em 161) são em Lisboa e Vale do Tejo (LVT). Ora este é um pormenor importante!

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Analisemos:

  • 28,5% das vagas de Medicina Interna não foram ocupadas (67 em 235, das quais 42 – 62,7% – em LVT)
  • 12,4% das vagas de MGF idem (71 em 574, das quais 38 – 53,52% – em LVT)
  • 45% das vagas de Imunohemoterapia idem (9 em 20, das quais 9 – 100% – em LVT)
  • 40% das vagas de Farmacologia Clínica idem (2 em 5, das quais 2 – 100% – em LVT)
  • 18,9% das vagas de Patologia Clínica (7 em 37, das quais 6 – 85,7% – em LVT)
  • 10% das vagas de Saúde Pública (5 em 50, nenhuma em LVT)

Nos últimos anos nunca “sobraram” vagas exceto em 2021 e o Ministério da Saúde e a Ordem dos Médicos  têm vindo a fazer um grande esforço para aumentar as ofertas, para que todos os médicos jovens se possam especializar, mas como se vê, não resulta… e já se percebeu que não chega continuar a aumentar o número de vagas pois elas não são preenchidas e, absurdo dos absurdos, muitos candidatos escolhem conscientemente ficar de fora. Há que fazer algo mais para não perder esta “inteligência clínica” em que o país tanto investiu.

Dadas as carências em recursos médicos, este enorme esforço para maximizar o número de vagas, foi feito especialmente em Lisboa e Vale do Tejo (com maior incidência em MGF e Medicina Interna), e este mau resultado é um golpe enorme nas expectativas do Ministério da Saúde … e especialmente nas dos portugueses sem médico… e não adianta tapar o sol com a peneira, e escamotear a realidade, porque o que se queria atingir, não foi conseguido.

Vamos a factos: O vencimento + subsídio de alimentação de um médico interno, é na prática inferior a 2 salários mínimos, e esses cerca de 1200 a 1300 euros líquidos não chegam para que um médico interno, sem família por perto, se sustente em Lisboa e Vale do Tejo.

As razões são financeiras, mas também pela ausência de condições para o grande esforço que os internatos exigem, tempo de vida em que se tem que estudar muito e trabalhar muitas vezes em condições difíceis e em que as responsabilidades são enormes, pois incidem diretamente sobre vidas de pessoas…

Além disso, emigrar para outros países da Europa comunitária ou trabalhar a fazer urgências como “tarefeiros” (sem especialidade!!!) é muito mais rentável (de 3 a 5 vezes mais!!!) do que ser interno de especialidade… e assim, é o próprio Ministério da Saúde que distorce o mercado pagando mais a empresas de trabalho temporário que contratam médicos indiferenciados, do que a médicos que se estão a diferenciar! É um SNS incompreensivelmente autofágico! Aliás, se alguém quisesse destruir o SNS devagarinho, sem dar a impressão que o estava a fazer, poderia optar por este curioso modelo… em que “o pai SNS” paga mais aos “estranhos” do que aos “filhos” que já lá trabalham, assistindo-se ao absurdo fenómeno dos médicos do hospital A irem fazer tarefa ao hospital B, e vice-versa, com todas as consequências que se adivinham para a deficiente integração das equipas e para a estabilidade de vida dos profissionais, na prática, com óbvios prejuízos para os doentes.

Ora quem já trabalha 40 horas e muitas vezes é legalmente obrigado a fazer mais 12 para guarnecer as equipas de urgência, a preço de saldo (!!!), e tem que estudar em casa para tratar bem os doentes e ter sucesso no seu duríssimo processo formativo do internato médico, incluindo os exames que todos os anos se sucedem, não tem tempo útil para trabalhar como “tarefeiro”, que normalmente, e por absurdo, é muito melhor remunerado! E os que o fazem, roubam tempo à família, ao estudo e ao necessário descanso.

Os decisores políticos terão de interpretar muito bem estes resultados, até porque em 2022 repetiu-se, mas três vezes pior, o que aconteceu no ano anterior. De facto, em 2021 sobraram “apenas” cinquenta vagas e portanto o número das vagas não escolhidas em 2022 (161), mais do que triplicou. Como será em 2023?

Para quem, como eu, tem participado desde 2012 no esforço titânico que dentro da Ordem dos Médicos e em cada Serviço hospitalar ou Unidade de Cuidados Primários, se têm feito, para maximizar a capacidade de formação de especialistas, este é um verdadeiro murro no estômago… e 161 oportunidades perdidas que, a somar às 50 do ano passado, já somam 211!

Na verdade, 161 em 2044 são “apenas” 7,9% das vagas… o problema é que, mesmo que todas tivessem sido preenchidas, ainda estaríamos a correr atrás do prejuízo, pois estes números não resolveriam o problema da carência de recursos humanos médicos do SNS, embora pudessem ajudar a que o problema, a prazo, fosse menor…

Por outro lado não se pode ignorar que um país com as nossas carências na saúde possa andar a pagar a médicos indiferenciados (vulgo “tarefeiros”) bastante mais do que a médicos internos da especialidade (que já estão em processo de diferenciação) ou mesmo a especialistas, só porque os segundos estão em diferenciação ou porque os terceiros já fazem parte dos quadros hospitalares, e os “tarefeiros” não. É a inversão da valorização da competência profissional!

A sigla “para trabalho igual, salário igual” anda a ser muito ignorada por governos que se dizem de esquerda… mas colaboram no enriquecimento de lobbies de empresas de trabalho temporário médico, quando muitas vezes podiam pagar diretamente aos médicos de cada hospital, não tendo que engordar esses lobbies… que, desenganem-se, não trabalham sem o competente lucro. Ou seja, ficaria com certeza bastante mais barato…

Por outro lado, esta ausência de medidas de fundo é uma verdadeira esquizofrenia de grupo, que tem que ser denunciada, em que todos sabemos que uma das grandes causas do problema é financeira, pois os médicos internos não podem pagar alojamento em LVT com os magros salários que auferem… e por isso preferem emigrar ou continuar a trabalhar nas urgências como “tarefeiros” e adiam o seu futuro e a sua diferenciação que, ao menos, lhes devia permitir viver decentemente em qualquer lugar do País… e não me estou a referir, obviamente, à Quinta da Marinha…

Simplesmente porque esses jovens médicos são seres humanos e não querem ir para o “pelotão de fuzilamento”… onde vão ser explorados pelo excesso de trabalho, onde sabem que vão ser mal remunerados, que não vão conseguir pagar as suas contas, não querendo continuar a ser dependentes dos pais, havendo mesmo alguns casos em que acreditam que não vão ser bem formados. Aliás começa a haver locais e vagas que não são escolhidas repetidamente, exatamente por todas estas razões…

Por isso, esta recusa de grupo, em que quase 20% dos candidatos nem sequer escolhem uma vaga, chama a atenção para que algo vai muito mal no Reino da Dinamarca!

Note-se que ainda há poucos anos havia apenas cerca de 1500 vagas anuais e agora, já vamos em 2044! E todas elas são validadas pela Ordem dos Médicos que afinal, e apesar da debandada de médicos especialistas formadores do SNS, tem colaborado muito com o Ministério da Saúde no aumento do número de vagas formativas para as diversas especialidades. Os números não mentem!

Note-se ainda que são escassas as vagas para formação de especialistas em hospitais privados. É verdade! O respeitável interesse pelo lucro não chega para motivar suficientemente os grandes grupos económicos privados da saúde a formar mais especialistas. Preferem, sem custos formativos, ir buscá-los onde os há, ao SNS, e obviamente já depois de formados, pagando-lhes um pouco mais.  E como sabemos, com os salários que o SNS paga, não é preciso muito… é um sistema win-win em que só perde o SNS e portanto o Povo português.

Como todos sabemos, a saúde, tal como a justiça e a educação, são assuntos demasiado sérios para que sejam deixados apenas à iniciativa privada. A respeitável procura do lucro e do bem estar pessoal não podem ser a única dimensão de que as decisões dependem.

Por último, não esqueçamos que mais de 35% da força laboral médica do SNS são os mais de 11000 médicos internos e que os médicos portugueses são dos mais mal pagos da Europa em paridades do poder de compra.

Impõem-se decisões corajosas, rápidas e eficazes. Com maioria absoluta, a ação dos decisores políticos está facilitada e não haverá desculpas para que os problemas não se resolvam.