Abraçar um amigo na mota para não cair. Fazemos todos isso, certo? Não vamos correr o risco de rachar o crânio no separador central da A2, ou vamos? Mais ou menos. Deus nos livre da proximidade com alguém do mesmo sexo suscitar alguma expansão existencial enquanto um pisca brilha para indicar que vamos para a esquerda quando, se calhar, até gostávamos de ir para a direita. E por isso, muitos de nós, agarramos só naquelas barras metálicas de lado da mota, determinados a não começar um caminho sem retorno entre o Marquês de Pombal e o Largo do Rato. O perigo esconde-se muitas vezes nos semáforos.

Começa a ser recorrente a conversa de que a homofobia já não existe…Muito. “Vocês já têm tantos direitos! Ainda é preciso essa coisa das paradas? É que assim afastam mais as pessoas, sabes?”. “Vocês”. E depois de mais um mês de Pride – a celebração do Orgulho LGBTQI+ que acontece no mundo inteiro cada vez em mais países, cada vez de forma mais segura e pungente – a situação local parece indicar que sim; a homofobia está a ficar mais frágil. “Vocês”. Ou “nós”. Até já nem somos espancados na rua. Ou será que somos?

No passado fim-de-semana, em Coimbra, dois namorados deram um beijo na boca num centro comercial. A punchline não envolve uma tuna ou um exame de anatomia passado com distinção. Inserir gargalhadas e normalidade. A punchline chegou com um alicate na cabeça de um deles, danos físicos visíveis e horríveis nos dois e o reafirmar de medos antigos nos alvos deste crime de ódio e em todos aqueles que sabem que a homofobia, a transfobia, e a violência são realidades que estão ao virar da esquina. Ou dentro de casa.

Quantos suicídios ou depressões, ainda, num país que consagra na sua constituição a proteção de qualquer pessoa, independentemente da sua orientação sexual? Mesmo tendo descriminalizado a homossexualidade em 1982? 1982 que foi ontem, claro. Embora com a nossa ginástica diária made in Instagram, nos fique a sensação de que foi há “muito tempo”.
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Sim, evoluímos tremendamente. Em África ainda se mata. E por cá já não se interdita ou persegue, como se fazia nos anos 0,10,20,30,40,50,60 ou 70. Não há polícia política que faça catfishing e prenda quem ousa fazer o seu próprio género enviando-o, por exemplo, para uma cela ou, quem sabe, umas férias sem retorno para a Chechénia.

A celebração deste movimento não é show off; exibicionismo ou masturbação pública. É necessária porque ainda há muito por fazer. Porque ainda há alicates que voam na direção de seres humanos. Porque fomos educados para a vergonha. E, honestamente, porque se há quem saiba fazer uma festa… É a comunidade LGBTQI+. Purpurinas? Música? Alegria? Fazemos disso arte há séculos para suplantar as guilhotinas, as fogueiras e a repressão.

Se se pactuar com o silêncio, mais força se dá ao argumento “Homossexuais? Não aceito, mas tolero”. “Ele não era uma pessoa, era uma…Coisa”. “Onde é que já se viu duas mulheres a ter filhos?” “Eu respeito muito as OPÇÕES dos outros”. Já ouvi dezenas de vezes frases dentro desta tipologia. Algumas até já vieram na minha direção. A última vez? Rock in Rio, 18h55, umas meias cor-de-rosa com camelos provocaram a ira de um homem. Percebo. Também não consigo confiar em camelos.

Já vi medo nos olhos de homens e mulheres que só querem ser vistos, amados e protegidos. Ainda há ódio. Ainda há violência. E cabe a todos, LGBTQI+ ou não, a defesa e celebração da máxima “Eu sou tu.” Porque somos todos iguais, não só na teoria, mas na prática.

Antecipo o ódio nos comentários a este artigo. Não só porque o tempo já esteve melhor e o Mundial já foi, mas porque estamos demasiado habituados à lógica de não existência. Preconizo a fúria e os versos copiados da bíblia.com.br porque há ainda demasiada gente que gostava de agarrar o amigo na mota sem ter medo de gostar. Que inferno, isso, não é? Ter medo de um semáforo.

Acredito que vamos a caminho embora ainda estejamos habituados a que ninguém “incomode” falando, imagine-se, de quem ama; de quem é; do que gosta. Chamam-lhe evangelização gay ou A queda dos bons costumes ou A devassa da moral. Eu chamo-lhe existência; Vida; Inclusão; E falta de vergonha. Finalmente.

Rui Maria Pêgo nasceu em Lisboa e tem 28 anos. Trabalha há nove anos em rádio e televisão. Em 2015 criou a série “Filho da Mãe” e este ano estreou-se em teatro com a peça “Avenida Q”.

O Observador associa-se aos Global Shapers Lisbon, comunidade do Fórum Económico Mundial para, semanalmente, discutir um tópico relevante da política nacional visto pelos olhos de um destes jovens líderes da sociedade portuguesa. Ao longo dos próximos meses, partilharão com os leitores a visão para o futuro do país, com base nas respetivas áreas de especialidade. O artigo representa, portanto, a opinião pessoal do autor enquadrada nos valores da Comunidade dos Global Shapers, ainda que de forma não vinculativa.