Em janeiro passaram 70 anos sobre a libertação dos sobreviventes dos campos nazis e, a propósito, quase tudo foi dito e escrito sobre os campos, a dimensão do horror e a necessidade de não esquecer. Não pretendo repetir o que foi dito. Quero falar de um aspecto que é frequentemente esquecido ou silenciado: o papel dos médicos que trabalharam nos campos e participaram activamente no genocídio.

Josef Mengele numa imagem anterior a 1945

Josef Mengele numa imagem anterior a 1945

Não vou discorrer sobre Josef Mengele porque toda a gente sabe quem é (ou pode saber facilmente através da wikipédia) e porque, sobretudo, Mengele é o puro horror e, nesse sentido, cabe nas nossas categorias mentais: o “anjo da morte” é o anjo caído, a perda de Deus, a impiedade. No limite, é simplesmente um psicopata e pode ser classificado e arquivado como tal.

São os outros que perturbam. Os outros médicos. Os que participaram, nem tanto nas experiências que se fizeram nos campos e que são aquilo em que se pensa quando se pensa em médicos nazis, mas na continuada e sistemática gestão do processo de genocídio: a selecção dos prisioneiros à chegada ao campo, a triagem dos doentes, a supervisão do processo final de execução nas câmaras de gás.

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Apesar de todos os nossos discursos sobre a comercialização da medicina, há uma estranheza especial quando pensamos nesta gente. A presença de médicos nos campos inspira mais horror do que a de outros funcionários. Mengele é mais horrível do que Eichmann. A verdade é que continuamos a associar o médico à figura do “curador”, que é uma figura presente nas tradições de todas as culturas humanas. Que o curador se torne um assassino é uma aberração particularmente aberrante.

A pergunta é (como sempre): porquê?

Uma experiência de imersão em água gelada no campo de concentração de Dachau, supervisionada por dois médicos: o Professor Ernst Holzlöhner (à esquerda) e o Dr. Sigmund Rascher (à direita).

Uma experiência de imersão em água gelada no campo de concentração de Dachau, supervisionada por dois médicos: o Professor Ernst Holzlöhner (à esquerda) e o Dr. Sigmund Rascher (à direita).

Robert Jay Lifton, professor de Psiquiatria e Psicologia no John Jay College e na City University of New York, procurou responder a esta pergunta. Para tal, entrevistou, ao longo de anos, vinte e nove médicos nazis que trabalharam em Auschwitz. Os resultados dessas entrevistas e a sua discussão estão publicados no livro The Nazi Doctors, Basic Books, 1986.

Lifton concentra-se em dois mecanismos, que designa por “socialização para a morte” e “doubling”. Nas palavras de um dos entrevistados: “In the beginning it was almost impossible. Afterward it became routine.”

Um dos mecanismos mais importantes eram as sessões de bebedeira na messe, à noite, em que eram livres de confessar todo o horror que sentiam sem que isso resultasse em quaisquer represálias. No fim, havia a aceitação de que aquela era a realidade – e que era preciso viver com ela. A habituação ao horror partia, claro, da “evidência” de que os judeus deviam ser “extirpados”. Como um “apêndice gangrenoso”, nas palavras de outro entrevistado de Lifton.

O resto eram racionalizações piedosas. Desde logo, o gaseamento era “uma melhoria” relativamente a métodos anteriores: eficiente e, sobretudo, “misericordioso” – “What is better for [the prisioner] – whether he croaks in shit or goes to heaven in gas?” E, de qualquer forma, quando entravam nos campos “já estavam mortos” – se era à chegada ou meses depois era uma questão de sorte (ou azar).

E há aquilo a que Lifton chama “doubling”: os médicos eram autorizados a passar alguns dias de férias por mês longe dos campos, junto das famílias – o que os ajudava a manter essas duas vidas separadas e pensar em si mesmos, não como assassinos, mas como gente normal que era obrigada pelas circunstâncias a suportar “a dirty but necessary job”.

Os campos nazis são a demonstração de que as tradições, até mesmo tradições tão fortes como a do “curador”, podem ser corrompidas e destruídas com uma estrondosa e assustadora facilidade. A conclusão de Lifton é que “No individual self is inherently evil, murderous, genocidal. Yet, under certain circumstances, virtually any self is capable of becoming all of these.”

Lifton, claro, não se livrou das inevitáveis acusações de relativismo. Mas ele mesmo esclareceu que “my conclusion is by no means that we are all nazis. We are not all nazis. … [There is a] crucial distinction between impulse and act.

Esta questão do impulso e do acto não serve só para os médicos nem para os nazis. É de aplicação universal, tanto quanto as questões humanas podem ser universais. Podemos aplicá-la aos extremistas islâmicos, aos niilistas russos ou aos desordeiros dos subúrbios.

Nas suas Cartas a um Amigo Alemão, Camus, com o seu jeito especial para as afirmações lapidares, escreveu: “Parce que vous étiez las de lutter contre le ciel, vous vous êtes reposés dans cette épuisante aventure où votre tâche est de mutiler les âmes et de détruire la terre. … Pour avoir dédaigné cette fidélité à l’homme, c’est vous qui, par milliers, allez mourir solitaires.

Nota: o livro de Lifton está acessível online aqui, por especial permissão do autor.

Médico patologista