O público está aflito com as máquinas lampeiras.  Não contentes com aspirar a casa, parece que sem ter cabeça fazem contas de cabeça, sem saber falar imitam vozes de políticos conhecidos, e sem saber o que fazem aprendem a ler chinês; e se tornaram ainda respondonas e a-propósito.  Foi o suficiente para se começar a imaginar-lhes órgãos internos e externos, baços e pernas, pulmões e unhas.   O órgão preferido por essas imaginações tem um aspecto de cérebro.  Mas ao contrário das vísceras que panávamos em tempos mais felizes este novo cérebro é só limpeza e luz, à base de cartolinas onde foram impressos mapas de metropolitano.  Em rigor não se trata de um cérebro, mas de uma espécie de fígado etéreo a que chamam mente.   Faz tudo o que o cérebro faz, mas não suja a casa.

A mente será responsável por certos estados que a seguir, possivelmente através de uns fiozinhos, nos fazem levantar o pé. Os escolares dividem-se quanto aos fiozinhos.  A maioria acha que são realmente tubinhos, que ligam uma coisa que não se nota a uma coisa que não se vê.  Passará alguma substância pelos tubinhos, e a certa altura as coisas transformam-se numa terceira coisa.  O processo permite ao fígado de cartão cometer actos mentais: ver, sentir, ouvir e pensar com uma velocidade admirável, e depois causar, por um sistema de roldanas tão pequeno que mal se vê, a erecção do pé.

O público aflige-se em particular com o que calcula ser o pensamento das máquinas lampeiras.  Se elas podem fazer contas de cabeça tão velozmente, adquirir vozes reconhecíveis, convencer quem está na sala ao lado de que sabem ler chinês, e remonstrar com uma insolência que ao princípio nos diverte e depois nos assusta, talvez tenhamos conseguido replicar em cartolina a comissão de actos mentais que anteriormente nos distinguia, e tenhamos realmente construído máquinas capazes de pensar.   Percebe-se por isso a ralação. Onde é que as coisas poderiam chegar se por acaso um dia as máquinas, depois de chegar a certas conclusões, organizassem uma nova revolta dos dinossauros?

Não há razões para aflição.  As máquinas fazem certas coisas muito mais depressa e melhor que nós; mas só fazem coisas que nós, se fossemos eternos, faríamos com uma perna às costas.  Por analogia não admira que lhes imputemos uma mente.   Estamos porém a chamar mente à causa de as máquinas fazerem coisas que também faríamos, e para as quais se acha que é preciso termos um fígado etéreo.  Visto aquilo que fazem, e visto que não sabem o que fazem, o que as máquinas conseguem fazer lembra-nos para nosso embaraço que uma parte grande das nossas vidas é passada a fazer contas, a imitar vozes, a ler chinês, e a ser respondões.  O problema não é as máquinas não pensarem: é nós pensarmos menos do que pensamos.

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